QUANDO EU ESPIAVA a cruz no alto da matriz de São Sebastião, me perdi em pensamentos que me levou há séculos antes, tempos em que promessas feitas na época da chólera morbus e outras pestes que assolaram o interior e coração de nosso país, levavam a população a cumprir promessas com a construção de capelas e cruzeiros. Estava eu pensativo olhando nuvens escuras e respirando um vento denso e gélido que vinha do norte, lá das bandas da Serra dos Borges; me dei conta de que depois de muitos meses secos, era, enfim, a vez da chuva banhar aquelas paragens, aqueles rincões que foram desprezados por São Pedro nos meses anteriores. Era uma chuvinha que banhava o chão, como se diz no Cariri: um chuvisco. Primeiro um sereno daqueles que revigora a alma, despertando as memórias mais longínquas. Cheiro de terra molhada, esse perfume da natureza é impagável, emocionante e transcendental.
Parti com a amiga pesquisadora Ritinha Cantalice, como gosta de ser chamada, ou a “menina das pedras” como respeitosamente a chamo. Seguimos para o Sítio Salgadinho com o intuito de conversar com um morador do lugar, seu nome é Seu Adilson Matias Borges, contudo, por essa denominação de batismo, quase ninguém é capaz de reconhecê-lo. Mas em qualquer lugar dos arredores de toda a região, quando se fala em “Véi de Agácio” (véi mesmo!), qualquer pessoa sabe muito bem de quem estamos tratando e se refere com respeito.
Por conta da chuva que banhou a região, tive alguma dificuldade para seguir a estrada que nos levava ao Salgadinho. Rica em argila, o carro dançava e quase rodou desgovernado, sendo capaz de roçar nas cercas de um lado e de outro. A minha perícia dirigindo aquele automóvel acabou sendo o suficiente para evitar qualquer infortúnio, ainda assim temi ficarmos desgovernados e aquilo me preocupou. Ao contrário e totalmente despreocupados, duas motos passaram por nós como se andassem sobre um tapete de asfalto, um carro também passou em toda velocidade. Avisei, sinalizei a ambos. Se estavam acostumados com aquela situação? Deviam estar...
Algumas curvas à frente, vimos uma casa à direita, em destaque naquela paisagem, e era justamente a morada do camponês que queríamos conversar para entender um pouco a história e o povoamento daqueles sítios e fazendas. Véi de Agácio tinha 77 anos, conhecido em toda a região principalmente pelos mais antigos. Agácio era seu pai, remanescente das famílias mais antigas de todo o município de Gurjão, Cariris Velhos da Parahyba, nosso Mundo-Sertão. Residente no sítio Salgadinho, “Véi” é neto do também agricultor e criador de gado na região Ubaldo Borges, que ele não conheceu e com emoção relatou que Ubaldo morreu em 1943 e ele nasceu dois anos depois, em 1945, embora isso não seja qualquer empecilho para acreditar e seguir o legado da família, sobretudo do seu avô, em toda a sua vida e nos ensinamentos que seguiu religiosamente.
Passamos pela porteira, subimos metade do outeiro onde está a sua morada. Estacionei na lateral da casa para que o cenário e o horizonte não fosse corrompido em nosso olhar. Desci do carro sob os olhares atentos do Véi de Agácio. Quanto a Ritinha, ele disse conhecer ainda no ventre de sua mãe, mas eu era um elemento estranho até aquele exato momento. Mesmo assim, nada impediu que conversássemos. Com sua simpatia e alegria, me chamou para ocupar o pequeno e aconchegante alpendre para que a conversa fluísse melhor. Passei a portinhola de madeira na cor azul, ocupei um dos bancos e em menos de dez minutos, Véi de Agácio se dava a uma generosa intimidade e contava, inclusive, alguns segredos. Ritinha atribuía a mim aquela situação harmoniosa. Claro que não me sentia assim, mas observava. Conversamos por volta de quase duas horas.
Imaginem um senhor agalegado vestido com roupa social, camisa branca de manga comprida com alguns botões fechados a esconder a barriga e uma calça cinza, à moda antiga; todas, claro, surradas com o sabor do tempo e da lida diária no roçado, alegre que estava com o poço que tinha conseguido furar. Ele ainda portando um relógio de metal e um punhal na lateral de sua cintura. Foi nesse cenário que ele narrou tanta coisa do lugar, região de beleza e história singular. Mostrou um banco singelo, de miolo de aroeira, que foi de seu avô e que tem pelo menos duzentos anos. Ubaldo Borges sentou nessa relíquia que o Véi de Agácio prometeu doar ao futuro Museu Histórico de Gurjão.
Nesse contexto de pandemia, no fim de junho do ano passado, ele faleceu vitima dessa famigerada doença que ainda nos assola, infelizmente. Apenas vinte dias após nossa calorosa conversa. Fica seu sorriso amigo, suas brincadeiras e a certeza que nos encontraremos...
Veja também a crônica: 'A menina das pedras' no link
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Publicado na coluna 'Crônica em destaque' do Jornal A União em 21 de janeiro de 2023.
Meu vô era meu herói, um homem que quem conhecia respeitava. Obrigada por escrever isso e falar sobre ele, não sabe o quanto significou isso❤️
Véi de Agácio contou muitas histórias e teve aqui sua Última Crônica. Foi sentar-se no banco secular ao lado do avô.
Olá Professor Thomas!
Que bom você se prestar a trazer semanalmente um pedacinho de nossas origens, para serem lembradas e revividas em suas crônicas tão bem relatadas!
Gratidão!