É INEGÁVEL a nossa relação cultural, principalmente no interior do Brasil, com o gado, principalmente o vacum que são os bois, bezerros, vacas e assim por diante. Podemos dizer que essa vinculação de criação e pastoreio é tão antiga quanto às primeiras civilizações. A colonização das terras de nosso Mundo-Sertão, por exemplo, teve como principal atividade econômica a criação de currais. Dando conta de uma benfeitoria (como guerrear os indígenas e expulsá-los da terra), colonos pediam em carta a “El Rei” de Portugal uma determinada data de terra informando aproximadamente o lugar: três léguas ao poente da Serra do Sucurú até o olho d’água tal, por exemplo. Como ocupação, se informava que o intuito era criar currais de gado.
Em nosso folclore, temos um compêndio de literatura oral que, segundo o folclorista Câmara Cascudo, louva as façanhas, agilidade e a força de bois. Novilhas assassinas e outras histórias são declamadas por poetas cantadores até hoje, compreendendo essa ‘civilização do couro’ – nos dizeres de Capistrano de Abreu – isso nas regiões mais expressivas em pecuária. O vaqueiro, personagem central nessa relação, é fardado em um terno de couro curtido do gado e tudo isso, como diz Jessier Quirino: “é cagado e cuspido, paisagem de interior”.
Aqui no Mundo-Sertão temos muitas histórias que fazem referência ao gado. Duas cidades no Seridó se chamam ‘Currais Novos’ e ‘Parelhas’; nos Cariris Velhos, temos Ouro Velho que já foi ‘Boi Velho’, isso porque havia um boi muito velhinho que costumava pastar na sombra de um Juazeiro que havia na borda do povoado de Conceição, lugar que ganhou, assim, a denominação: “Pra onde vais? Vou acolá, pra Boi Velho...”. Hoje o nome do município é Ouro Velho em oposição/rivalidade a vizinha cidade de Prata, mas essa é outra história. Ainda no Cariri temos o município de Gado Bravo, antiga Olho d’água e também Vila de São José. Seu nome deriva do costume de vaqueiros e tangerinos conduzirem seus rebanhos aos gritos de “vai, gado bravo!”.
Nessas andanças pela Parahyba, vi coisas interessantes. Na zona rural de Boa Vista, encontrei uma vaca ressequida escorada em uma catingueira. Pelo pouco conhecimento que tenho, ela jazia de pé já fazia alguns meses, não sei quantos, e o caminho poeirento e ressequido, naquele verão bravo que Deus dava, apresentava vegetação totalmente desfolhada, a caatinga em pleno modo de racionamento de suas forças.
Já andando por Caturité, também nos Cariris Velhos, um bucólico lugarejo nas fraudas da Serra de Caturité, vi uma vaca que de tão velha, era praticamente o couro e o osso, andava desengonçada, mas entrava onde quisesse e tinha uma relação de complacência com a população do lugar. Mansa, não lhe faltava água e pasto.
Certa vez, ouvi a história de uma vaca – também do Cariri – que me emocionou. Aconteceu nos confins de Aroeiras e Gado Bravo. Dona Severina Barbosa me contou que um tempo após seu esposo ir buscar melhores condições de vida no sul do país, ela com uma meia dúzia de filhos pequenos decidiu ir morar em Campina Grande para que os rebentos pudessem estudar e, na cidade centro da região, as coisas poderiam ser melhores. Para tanto, precisava se desfazer de suas posses no sítio e, para isso, contou com alguns familiares naqueles pés de serra. Vendeu uma máquina forrageira, “um trator véi”, roçadeira, além dos bichos que restaram e também a casa.
Havia uma vaca, de nome mimosa. Era inteligente, ia pela porta da cozinha, recebia todo tipo de afago dos filhos e dela. Eu ouvia o relato tomando uns goles de café, foi quando ela suspirou e fez uma breve pausa, a lembrança fez brilhar seus olhos. É que seu compadre Idelfonso comprou a vaquinha de estimação. Ele morava do outro lado da serra, a uma distância considerável. Quando ele a levou, era umas duas da tarde. Não foi sem antes ganhar um alisado e um cheiro na fronte da antiga dona. O mais surpreendente aconteceu pouco mais de duas horas depois. E não é que mimosa vem correndo desesperada e se joga contra o cercado querendo entrar? “Ên-êm Thomas, a bichinha tão apegada se ferindo na cerca querendo ficar com a gente. E eu pensei, será que vou mesmo pra Campina?”. Idelfonso a levou novamente e a amarrou em um pé de Aroeira e nunca mais Dona Severina a viu. “Parece que não viveu muito, deve ter morrido de tristeza...”, disse.
Essa história revela a íntima relação das criações com seus donos. Quem cria algumas cabeças, reconhece todas e elas atendem pelo nome. Décadas depois da partida do interior de Gado Bravo, Dona Severina ainda se emociona com a lembrança, um retrato fiel dos costumes de nosso Mundo-Sertão desde tempos imemoriais.
Veja também a crônica: 'Histórias caririzeiras no link
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Publicado na coluna 'Crônica em destaque' do Jornal A União em 18 de fevereiro de 2023.