O oitão da casa no sítio Tambor está preparado, a poeira assentada. A gambiarra de luzes amarelas dá as cores à noite. A Charanga dos Batistas dá os toques, tudo está nos conformes. Aqueles homens vestidos com camisa xadrez do mesmo tecido e chapéu, acompanhado de mulheres da família com vestidos em igual cor, o ritmo é o coco! Lá dentro, já tem galinha cheirando. O fogão de lenha de Tia Judite estala forte a lenha seca. Tem uma panela de barro com um porquinho bem gordo, não poderia faltar, já que Judite, a anfitriã da festa, adora.
O povo vai chegando, alguns da Serra do Maracajá, outros do 12. Caravanas de Campina, Natal e Recife são esperadas. Chega o carro com o Joãozinho e irmãos atravessando o terreiro. Início da noite e naquele cariri ventava muito, João penteia o pouco cabelo antes de por o chapéu. Nevinha veio ao seu lado, descendo do carro com uma alegria sem igual: “nêga, venha cá que trouxe uma coisa pra você”. De braços abertos, Nevinha bate no peito, olha pra Loudinha e diz: “Tô de volta a Mumbuca!”. Nezinho chega em seguida e me procura: “Bruno, é ali a pedra encantada que tem um tesouro”. Mas Tio Nezinho, o senhor não viu lá do céu? Dois anos depois que o senhor partiu, batizamos a pedra, que é um sítio com pintura rupestre, demos o nome de Pedra da Judite. Foi tão engraçado a homenagem que ela disse: “A véa agora é famosa!”
Eu já estava lá desde cedo porque sabia dessa festança, a despedida de Judite tinha que ser em seu terreiro e ela cozinhando pela última vez. Gurizada tinha com força, gerações mais novas, chance de beber “o néctar de nossas raízes” como dizia Nezinho.
Papai chega com Mamãe, Wanessa, Poté, Dona Lourdes e começa a perguntar pelo povo, o primeiro abraço é em Neves: “Que saudade!” sorrisos que não cabiam neles. Uma Kombi chega com o povo de Poté, Ronaldo dirigindo. Descem Margareth, Lucinha, Fátima, Paulinha, Rildo, Sonia, todo mundo, e aquela animação contagiante. Todo o terreiro de Judite ocupado, os pedregulhos não atrapalhavam a dança. Nando dava um jeitinho nas caixas térmicas e já me chamava para tomar uma lapada. Da mala do carro, Joãozinho traz alguns foguetões que alumiam o céu naquele momento. Meu bisavô, Seu Zé Severino, encangado nos irmãos da charanga, pegou logo um cavaquinho. Um vizinho pega o pífano e desafina. É quando Zé Severino diz: “Cadê Nelson que ainda não chegou? Ele toca “pife” melhor”. Momento em que eu estava mais afastado da casa, espiando as estrelas do Mundo-Sertão. No escuro, vem vindo um homem forte, moreno, cabelos negros, bigodinho e uma mão no bolso. Era a cara de Tio Pedrinho (que estava atrasado), mas não era ele. Chegou mais perto, olhou para mim com um sorriso de canto de boca. Me arrepiei todo, era o meu avô Nelson, que a vida não me deu a chance de conhece-lo. Peço a bênção, ele beija minha mão e minha testa. “Que bom te conhecer meu filho. Me vi muitas vezes em você, estou sempre olhando por vocês”. Eu o abraço tão forte que sinto no algodão de sua camisa aquele cheiro antigo, um misto de perfume e um tom de cigarro, aquele aroma eu tenho certeza que era meu. Chamo Wanessa, que desaba no choro nos braços de nosso avô. Ligue não vovô, aí é uma manteiga derretida. Eles sorriem.
Pedrinho chega de repente e vem abraçar Nelson, Joãozinho também vem, velhos camaradas! Mando Wanessa ir chamar Papai que já tomava um cafezinho lá dentro e brincava com Zeza, Maria e Josinete (filhas de Judite). Já lá fora, na cisterna, Papai vê seu pai depois de 48 anos, arregala os olhos de maneira que nunca vi. Na hora Pedrinho, Joãozinho, Nezinho, Wanessa e eu nos afastamos. Aquele momento era deles. Esse encontro tem que acontecer de novo! Chega a turma de Natal, Zezé chefiando a equipe, não quer nem saber de conversa, vai para o pequeno palco e começa a tocar, e a noite vai acontecendo. Encontro espiritual envolto em uma aura de luz.
E eu com aquele aperto no coração, é como se tudo fosse acabar rapidamente e não teria chance de conversar com mais ninguém. Lá pelas tantas, o céu mudava seu tom azul, clareando aos poucos. Todos indo embora, sumiam no horizonte. Este encontro foi proporcionado pela despedida de uma alma tão gentil e generosa quanto a de Tia Judite, que se encantou na última segunda. Deus concedeu que aqueles que já se foram pudessem encontrar os que estão por aqui ainda, vendo “com seus próprios olhos”, sem a desfocagem das nuvens. Para eles, uma concessão divina. Para nós, o inconsciente tratou como um sonho, apagando qualquer vestígio real do acontecimento.
Foi um reviver de encontros naquele interior, as doces e prazerosas reuniões da família Oliveira. É por todos que já se foram que vivemos e carregamos essa tradição familiar, o néctar de nossas raízes estará sempre vivo. Que encontro, que sonho! Que Deus dê o céu a Tia Judite!
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