A Paraíba é farta em belezas naturais e históricas. As rodovias que se desenrolam neste verdadeiro tapete multicolorido pintam de asfalto velhas estradas empoeiradas, aplainando antigos caminhos por onde se deu o povoamento de todas essas terras. Recentemente tive a oportunidade de andar por esses rincões, revisitei o Curimataú, uma das regiões menos populosas de todo o estado. Diferente de outras áreas, seguir por aquelas terras é se sentir por alguns momentos isolado de tudo; as cidades, povoados e distritos que são cortados pela BR 104 ou ficam na beira da estrada são bem mais distantes uns dos outros. Essa característica nos dá inicialmente uma sensação de solidão; as cruzes na beira da estrada espertam sentimentos de piedade e também de medo, muitas são as curvas que podem eventualmente ser traiçoeiras.
Nessa confusão de pensamentos e excitação de sentimentos, a paisagem vai desvendando majestosas serras e montanhas, com destaque para as Serras do Algodão e da Caxexa, que com sua beleza vão chamando atenção em meio a estrada quase deserta. Curimataú a dentro, vamos cada vez mais para o alto, o destino é a cidade de Cuité que está lá em cima, no cume da Serra de Cuité, um dos contrafortes do Planalto da Borborema que se estende formando divisa com o RN ou como diria o Pe. Luiz Santiago, um grande ramal da cordilheira da Borborema. Até chegar à cidade, vamos subindo a serra em um leve ziguezague de curvas, no fim de cada uma delas a paisagem vai ficando ainda mais bela e insondável, é possível ver muitos quilômetros adiante, a vegetação ganha os ares da altitude, criando feição própria; em minutos avistamos o letreiro ‘CUITÉ’ aos moldes hollyoodianos, sinal que chegamos.
A cidade de pouco mais de vinte mil habitantes teve grande destaque no áureo tempo de comercialização do sisal; em sua zona rural, ainda vemos os pendões de agave por toda parte. Fui a Cuité à compromisso e logo me livrei para poder andar pela cidade, como o flanêur de Baudelaire, contemplando as minúcias daquele meio urbano. A pé, a rua se torna o chão sagrado onde pulsa a história e a cultura do lugar é impressa. Caminhando pela rua principal, que também é a BR 104, em um trecho em forma de ‘S’, somos apontados para o fim da cidade e placas adiantam os próximos destinos, na esquina, entre as ruas Floriano Peixoto e 25 de Janeiro, um prédio com cinco portas, bancos nas calçadas e letreiros das empresas Itapemirim e São José. Gente entrava e saía, animando o lugar, fui ver. Uma menina degustava ansiosa uma pipoca e sua mãe terminara um doce de leite daqueles em copinho descartável e colherzinha de madeira, ambas sentaram no banco, se amparando na sombra da marquise. Um cidadão fardado em social, calça preta, camisa amarela aberta pela metade (onde ostentava um crucifixo), rebolava um palito de um lado a outro da boca com ar de saciedade. Moto taxis aguardavam clientes e um homem falava ao orelhão, tão em desuso depois da telefonia celular.
Resolvi entrar. O ambiente amplo e iluminado pelos raios solares, coberto por cerâmica pequena e retangular branca, com rejunte preto, dava um ar de sobriedade e higiene. Um longo balcão separava o ambiente em dois: o dos clientes (com algumas mesinhas em madeira) e o das prateleiras, onde um senhor simpático e sereno atende os clientes, ao lado a porta da cozinha. Nas paredes, toda sorte de adesivos e papéis com mensagens, calendários, avisos e também as plaquetas com os horários dos ônibus. Pedi um café enquanto um cliente: “– Seu Biléu!” Pedia uma passagem para Cerro Corá-RN.
Seu Biléu é uma daquelas pessoas que parecem ser invisíveis, mas ocupa um lugar social de grande importância para a cidade. Por esse mister, as vezes é invizibilizado pela essencialidade de seu trabalho. Seu comércio funciona no mesmo lugar há 50 anos e para muitos habitantes, é a única rodoviária que a cidade conheceu durante sua história. Completamente sortido de mercadorias, não ousei saber o que poderia não ter. De café da manhã ao jantar, de tudo tem, servindo aos viajantes. Comi um pãozinho francês com um delicioso guisado enquanto conversávamos. Seu Biléu me contou do início, do gosto que tem pela cidade e em fazer o que faz, falou de seus conhecimentos em Campina, João Pessoa, Natal, etc. Sua alegria me fez lembrar Aristóteles quando disse “o prazer no trabalho aperfeiçoa a obra” e ali entendi o porquê de Seu Biléu ser tão querido e importante para Cuité, não tendo concorrência e servindo como movimentada rodoviária da cidade.
Cenário de diversão e sociabilidade, o comércio de Seu Biléu é seguramente Patrimônio Histórico de Cuité. Muitos anos de vida a Seu Biléu, qualquer dia volto lá.
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Publicado na coluna 'Crônica em destaque' no Jornal A União de 29 de fevereiro de 2020.
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