ELA LEMBRA com muito entusiasmo de seus tempos de ventura, de quando se deixava levar ao sabor de suas vaidades, uma moça sempre destacada entre as meninas de sua idade pela beleza e formosura. Certa vez me contou com muita emoção da farda com que ia estudar no estadual, uma saia bem pinçada e uma blusa de gola, um sapatinho sempre bem limpo e polido. Nas escadas de entrada, muitos meninos ficavam à esperar só para ganhar um sorriso da beldade. “– Era um tempo tão bom...” afirmou ao mesmo tempo em que aparava uma lágrima que mergulhava de seus olhos. Sentado no Bar de Dona Rosa, ela atravessa a rua para comprar um refrigerante e me conta um pouco de sua história.
Lembrou dos namoradinhos e de quando conheceu aquele que seria seu companheiro de uma vida toda. Casamento simples, sem pompas, mas muito bonito e elegante. A lua de mel foi em uma pousada na praia da Baía da Traição e talvez esse nome tenha sido uma premonição de sua vida recente. Não demorou muito e em menos de um ano engravidou de seu único filho. Romântica como era, dizia ser o fruto mais belo do casal, de seu amor. Ainda no ventre, o garotinho se remexia, chutava, se emborcava, trazendo a sua mãe muitas noites sem dormir.
Mora no mesmo lugar desde que casou. Aliás, no mesmo terreno, não na mesma casa. É que um tempo após o nascimento do menino, foi construída uma casinha nos fundos para a babá, que em seguida foi ocupada por uma empregada durante alguns anos. O bairro é passagem de saída do centro para o subúrbio, as casas são um misto de médio e baixo padrão, em sua maioria gente humilde. Seu esposo se chamava Fumaça, isso porque foi um habilidoso funcionário na fábrica de chumbo. O que lhe deu régua e compasso e a solução financeira de sua família, foi também o que o envenenou, levando sua vida aos poucos, um pigarreado que não passava até se descobrir “aquela doença” como ela disse, à moda dos antigos.
Meriângela é seu nome. Antes de se tornar viúva, alguns baques em sua vida foram exigindo mais do que seu sistema nervoso podia dar e o primeiro surto ocorreu quando seu esposo foi preso, apanhado no caminho de casa sob acusação de que assediara uma criança que morava na vizinhança, no que foi prontamente desmentido pelo pai da menina que depôs na delegacia e no mesmo dia Fumaça ganhara a liberdade. Seu filho, já moço, nunca se envolveu com nenhum tipo de droga, mas o alívio que dava com isso, retirava através de seu comportamento grosseiro, principalmente com a mãe, algo que sempre revoltou a vizinhança. Já com o pai, com aquele avantajado porte físico, ele não se “metia a besta”, pois levaria uma mãozada na mesma hora.
Até que um dia a Fumaça cessou, aquele trabalhador da fábrica de chumbo fechava seus olhos pela última vez. A cena do caixão no meio da casa debilitou por demais Meriângela, que desenvolveu nos dias que se seguiram alguns tiques nervosos e um olhar que se perdia no tempo, parecia por vezes estar mirando o além em busca de seu grande amor. Menos de um mês após a morte do Fumaça, o filho se revoltou e levou as roupas de sua mãe para o quartinho dos fundos e resolveu pôr a namorada dentro de casa. Com a expulsão, ela definhou, mas resistiu. Na casa da frente, seu filho vive hoje como dono e trata a mãe da pior maneira possível.
Certo dia, na boquinha da noite, ele comprou uma pizza que de muito cheirosa fez com que Mariângela se achegasse a porta. As duas casas eram unidas pelo quintal, cada uma com aquelas portas antigas divididas ao meio. Escorando-se na porta, vendo e sentido um cheiro inconfundível de massa, ela pede um pedaço, diz estar com fome. Ele vai até a porta, ergue seus braços a empurrando e fecha totalmente, desprezando tristemente aquela que lhe dedicou a vida. A esposa ainda retrucou, mas foi impedida de compartilhar uma fatia. Tal episódio, tamanha a fome existente, fez com que adquirisse um intenso mastigado nervoso que a acompanha até hoje. Além do olhar perdido e do balbuciar palavras indecifráveis, ela agora mastiga no canto esquerdo da boca, como a remoer suas dores, o passado e o presente, marcas profundas que se perdem na imensidão de sua alma.
É quando toca no rádio a música ‘Meu ex-amor’ do Amado Batista, ela para a prosa e canta um pouco da música. Levanta da cadeira, diz: “ – Tchau seu moço” e eu a acompanho com o olhar até a esquina. Vai até a pracinha próxima ver o passar de carros e pessoas, é assim que tem passado seus derradeiros dias de vida, um poço de tristeza, mas, também, de resiliência.
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Publicado na coluna 'Crônica em destaque' do Jornal A União em 08 de julho de 2023.
Quando a resiliência é uma ferramenta, uma atitude, escrevemos a palavra com gosto. Contudo, nesse doloroso e triste caso, a resiliê...
Muitas histórias, cada um com a sua!