ELA ACENDE O CIGARRO, vai até a velha radiola de ficha, hoje adaptada para uma cédula de dois reais. Nela, luzes parecem sair de todos os lados, seus diversos tons reluziam ao mesmo tempo em que palpitam com o ritmo de cada música tocada. No painel, a espera pelo dinheiro para destravar a escolha, exibia fotos das capas dos discos disponíveis em um menu demonstração. Mas para Rejane, só uma música tinha o significado de abrir os umbrais do fim de semana, o cair de tarde da sexta-feira, momento de libertação do espírito, depois de uma semana dura e sofrida sob todos os aspectos.
A feira já deu o que tinha de dar, e com os últimos raios de sol, o tipo de comércio vai mudando e os bares, já repletos de seus costumeiros frequentadores, dão o tom do início da noite, incendiando etilicamente aquele lugarejo da cidade que, aliás, foi levado para aquele local por seus cheiros indesejados, uma catinga pútrida é exalada por restos de frutas e a salmoura do sangue de animais ali comercializados desde a madrugada, escorrendo pelas sarjetas, deslizando nas pedras de calçamento, rentes ao meio fio que generosamente servem de calhas para aquela imundície mau cheirosa. Aqueles regos eram transpostos por passos vadios de mulheres e de homens, gente que da simplicidade faz seu modo de vida, aproveitando com criatividade tudo que ao seu redor parece não servir para absolutamente nada.
– Aqui, é essa! Ah, Noite Ilustrada, só você...
E os toques melodiosos de violões e batuques ressoam: “Jurei não amar ninguém/ mas você veio chegando e eu fui chegando também/ Daí, seu olhar no meu olhar/ Depois, tua mão na minha mão/ Na toalha de mesa de um bar, você desenhou um coração”. Aquela é a página musical de sua vida. O olhar romântico para um homem que conheceu no forró de Dona Mulata. Foi o primeiro a quem abraçou, entregou o corpo e o coração. Em momento contínuo, Rejane dança a música quase toda com os braços erguidos, olhos fechados e envolta a uma fumaça do cigarro que tragava sem parar. O dono do bar, Chicó vulgo “bigode de ouro”, já sabia dos pantim dela. Uma verdadeira corriola na soleira das portas e nos encostos das janelas vê-la com interesse.
Ela acorda do transe, aterrissa com suas lembranças e sentimentos no meio do bar. Acende outro cigarro e põe a última melodia que seus minguados recursos podem pagar. Dessa vez a música “Meu mundo caiu” por Maysa. Se escora no balcão, Chicó já a espera com um copo de cachaça quase esborrando. Espera a última estrofe: “Se meu mundo caiu / Eu que aprenda a levantar”... a bebida é consumida quase que em um só gole. Com olhos marejados, ela encara o dono do bar, que acena com a cabeça e uma respiração profunda; parece entender bem aquela vida em desgraça, aquele desamor tão doído. Mais uns goles e algumas de suas amigas chegam; as que trabalham no condomínio de luxo demoram mais a sair, são sete ou oito diaristas que ali se encontram para falar da vida, do amor, papo que as fortalecem.
Uma amiga a vê mais triste do que de costume e diz:
– Rejane, mulher, se ele vier hoje, você não vai sair com ele não que não vou deixar. Vejo que já chorou muito, vai viver assim até quando, só porque é pai do teu filho?
– Ah, o que vale é quando ele tá comigo, me trata bem. O que faz depois, não me importa. Responde Rejane com ar de empoderamento. Mas as amigas sabem que aquilo é da boca para fora.
E ele, o George, chega, como de costume, um pouco depois das sete. Silêncio. Pede a Chicó uma cana, brinda com ela e logo vão dançar. Uma, duas, três músicas e o desejo toma-os avassaladoramente. Na ponta da rua, a pousada Cariri acabou sendo, mais uma vez, o ninho de amor do controverso casal. Aos beijos, ele diz que a ama, ela não se contém da saudade de uma longa semana e desmancha-se em uma volúpia intensa.
Algum tempo depois, após juras de amor, ele a acompanha até a entrada principal do bar, o portal de encantos e desencantos. Nem entra, entrega-a a vida desgraçada que ela insiste em viver. Com um pouco de dinheiro dado por ele para pagar a conta, bebe cada centavo até a dormência da alma dar fim àquela dor. Já são quase onze. Trôpega, é levada pelas amigas, a pé mesmo, até seu casebre com quem vive com um filho de quatorze anos.
No sábado, tenta reunir os pontos na mente, saber o que ocorreu realmente. A lembrança, o desejo e a paixão por George é rechaçada, jura nunca mais cair em seus braços, até que chegue a próxima sexta-feira e sua degradante saga dolorosa continue. Rejanes e Georges, personas da cidade...
Veja também a crônica 'E se eu os perder? no link
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Publicado na coluna 'Crônica em destaque' no Jornal A União de 8 de outubro de 2022.
Olá Professor Bruno!
Esta era a dura realidade das "Mulheres de vida fácil" como eram conhecidas as que hoje chamamos de "profissionais do Sexo".
Muito bem relatado em sua crônica, com detalhes que nos fazem viajar em pensamento até aqueles tempos áureos dos cabarés e do Eldorado da feira central de Campina Grande-PB.