EM TEMPOS DE JOGOS Olímpicos, fui incentivado pelo historiador carioca Luís Antônio Simas a pensar quais os esportes se incluiriam como modalidade em um evento “rueiro, uma olimpíada de botequim” e fiquei a imaginar em uns jogos suburbanos, baseados no cotidiano da periferia de muitas cidades brasileiras. O exercício é por demais interessante e me fez refletir sobre o quanto, desde tenra idade, fui fustigado à competição. A disputa ocorria entre os irmãos desde quem fosse melhor em notas, o mais popular na escola ou ajudasse mais na realidade da casa. Na vizinhança essa competição acompanhou a vida inteira, tendo como palco as ruas, casas dos amigos, encruzilhadas, praças, campos em terra batida, quadras, mercearias, bares e tudo mais.
Uma dessas competições, das primeiras que busquei nas gavetas de minha memória, foi o ato de subir mais rápido uma copa de árvore, principalmente se a ação for motivada por se livrar de algum cachorro bravo (e parte da gurizada gostava de atiçar os cachorros, eu mesmo detestava), essa com toda certeza entraria no atletismo. Daí seguimos com as disputas em bolas de gude com o desafio direto no triângulo ou em bocas cavadas na terra, onde toda a habilidade dos competidores é premiada segundo a astúcia de suas pontarias. Também temos as disputas em pião, aqueles de madeira que em toda mercearia se vendia e a perícia em identificar o “ponto do pião”, que era entender a que distância ele melhor roda com relação ao jogador. Conseguir fazê-lo rodar com força e com o auxílio da ponteira (cordame) erguê-lo e pôr para rodar na palma da mão era o grande objetivo.
E se os jogos olímpicos estivessem circunscritos à nossa rua? Uma das modalidades mais praticadas eram os joguinhos de um goleiro e dois (ou três) jogadores de linha em cada lado. Há também o jogo de barrinha, as pequenas traves marcadas com tijolos ou sandálias. Podemos lembrar do “cruzinha”, quando um goleiro ficava no meio-fio, a trave usando em um lado um poste da rua, todos os meninos posicionados (os pequenos na frente e os maiores atrás) e um garoto mais habilidoso jogando a bola como se tivesse batendo um escanteio. Quem for fazendo gol vai saindo até sobrar o último, que é punido pelos outros com bons cascudos. Sem olvidar que, quando subia um funeral em direção ao cemitério, quase sempre a pé naquela época, os garotos paravam em sinal de respeito. Não raro se fazia o sinal da cruz. E o futebol de botão? O jogo de bafo com figurinhas? O jogo da mula que lembra o salto sobre o cavalo na ginástica? Essas modalidades eram bem disputadas.
E as pipas (ou corujas) disputando o azul do céu? Coloridas, pujantes, enfeitadas. Havia o desafio em ‘desbicar’ a pipa, sacudindo a linha como a desenhar um ‘Z’ no ar até que ela desça vários metros para depois dar linha ligeiramente e ela subir triunfante. Havia o ato de “batizar” que consistia em ir soltando a linha metro a metro até o fim. Segurando o nó na lata, tomado por comovente felicidade, se escolhia um nome para a coruja: poderia se homenagear um vizinho, uma namoradinha da escola ou algum parente, até mesmo um artista dos filmes da Tela Quente. Pipa com linha de cerol só para os maiores. As meninas adoravam brincar de baleada (um handebol de regra curiosa onde buscava acertar com a bola a oponente, aquilo era o balear). A disputa de toca (ou pega-pega), de se esconder e muitas outras, mediam sempre a habilidade e velocidade. A ‘academia’ ou amarelinha que misturava a escolha de um bom ‘patacho’ e a sutileza de pular de casa em casa com um dos pés.
E as disputas em mercearias e nos bares? A sinuca é quase uma unanimidade, assim como o totó ou pinbolim; o desafio que misturava conhecimento matemático e adivinhação na porrinha de palitos de fósforo; o jogo de dardo; o lançamento de tampa de garrafa em um copo, de lata de cerveja em balde de lixo, de arremesso de copo onde o vencedor é quem bebe mais. O par ou ímpar, o cara ou coroa, levantamento de peso: seja um saco, fardo de carne, de fumo, pesos da balança ou até de um cidadão que de tão bêbado estava entregue a Morfeu.
Em tudo se via a magia da adaptação e da criatividade. Os jogos suburbanos são repletos de “atletas” que ao praticar cada uma dessas espontâneas modalidades, exercem fielmente o sentimento de união, igualdade e diversão, tão fiéis ao espírito olímpico.
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Publicado na coluna 'Crônica em destaque' do Jornal A UNIÃO em 10 de agosto de 2024.
Professor Thomas!
Suas crônicas são uma verdadeira viagem no túnel do tempo.
Como nós éramos felizes!
Quando é que veremos uma geração tão rica em criatividade como a nossa.
Isso mostra que a felicidade está nas coisas mais simples da vida.