CAIR DE TARDE REPLETO de beleza, os cenários da cidade encobertos por generosidade dos céus. Uma nesguinha de chuva, um sereno arrepiante, um despertar de sensações. Quero ver mais além, os relevos, os contornos do açude, aquela marca geográfica, uma paisagem que é minha – será que veem como a vejo? Talvez, por que não? Se uma câmera estivesse ligada por todos esses anos, seria possível ver o que está aboletado em minha mente. E a cidade muda, se espraia, ocupa espaços outrora verdes, troca casinhas por caixões que abrigam mais gente, concreta, confina, espreme.
Passei um vasto tempo, muitos minutos, talvez horas, e não dei conta de viver novamente aqueles lugares que se mostraram para mim nas primeiras horas da manhã, quando a timidez do sol só quis alaranjar o céu e no fim da tarde, quando se vestia de névoa para passar os umbrais do dia, deixando-se abraçar pela noite de lua. No pavimento sobrado de minha casa, sobressai a varanda, distante do solo, de quem está ao chão. Ali, mais perto dos fios, das nuvens, do céu, me é possível enxergar o futuro com os olhos do passado e entender o que já passou com o olhar do presente. E a incansável chaminé da fábrica de papel sopra para muito alto uma fumaça branca. As vezes assanhada lembrando uma antiga maria-fumaça, n’outras vezes bem quieta e vertical, parecendo o incenso de erva-doce e arruda que acendo e me faz refletir no quarto. Perfume, beleza e os pensamentos energizados e fluidos que se perdem naquele esfumaçar.
Desviando de telhados e árvores, é possível ver o Açude de Bodocongó, suas águas mansas espelham suas margens, a frieza parece tê-las paralisado. Um barquinho de pescador risca a superfície, mas seu rastro logo se desfaz. Chove na Serra da Catirina, onde pulsam as nascentes do riacho que toma corpo. Esse ano, a sangria do açude quase sobe a ponte, e uma cachoeira se inicia com o início do canal que completou vinte e dois anos. Antes um riacho indomável, um matagal guardava as margens, mata ciliar indesejada e temida pelos moradores das cercanias. Duas passagens, uma aqui no início e outra que dava acesso ao Conjunto Severino Cabral. Caminho de veículos, rota de ônibus, no mais, um bolsão despretensioso de mata, fonte de ervas e também de lenha, vez ou outra. Não posso olvidar que os esgotos eram despejados no córrego e nos períodos mais secos, onde se via pouca água, populares o denominavam de “riacho podre”.
Veio um prefeito novo, o desenvolvimento, máquinas derrotaram as brenhas e transformaram quilômetros de chão, disciplinando o riacho (os esgotos e águas pluviais) em um largo canal. Duas pistas pavimentadas, calçadas largas com pistas encarnadas, espaço para ciclistas (talvez a primeira experiência na cidade, hoje deveras comum) e canteiros, um em cada calçada, com brotos das espécimes mais genuínas de nossa flora, todas devidamente identificadas com seu nome popular e científico. Desviava algumas vezes o caminho da escola até minha casa pelo canal para ver as mudas vingarem e decorar seus nomes. Lembro da caesalpina e da tabebuia, que até hoje sua beleza me encanta, o ipê.
Lá em cima da serra, uma imensa caixa d’água da Cagepa parecia o lugar mais alto e longe de se chegar, a alcancei depois de muitos anos, quando fui participar de um projeto no Parque Tecnológico da Paraíba. Ao leste, quando nasce o sol, um par de coqueiros no alto do Jeremias e as palmeiras formando uma cruz no alto do Monte Santo são as imagens mais marcantes. Mais sol e luz permite ver o imbricado de casas entremeadas naquelas escarpas, telhadinhos que parece uma colagem, uma pintura em tela. Mais para cá o Monte Santo e o alto da Bela Vista derramando ruas para os lados, à noite os faróis dos carros denunciam aquela verdadeira montanha russa. Prédios e mais prédios foram ali erigidos, penso que do alto deles a vista ainda é mais bela tanto para o vale do Bodocongó quanto para o centro, os confins da cidade até o Mirante, que é outro bairro que proporciona uma magnífica vista dos quadrantes geográficos que se sobressaltam para o leste, vestido de mata no sentido de Massaranduba, além da Serra de Bodopitá erguida ao sul cacheada de pedras com a Pedra de Santo Antônio sendo marco culminante na paisagem.
A Bela Vista toda construída, o Pedregal abaixo, a linha do trem e o apito que nos despertava duas vezes ao dia. No limite do olhar está a caixa d’água da Embrapa, seu formato circular faz com que sua tampa pareça um chapeuzinho. Via a caixa todos os dias, morei no Centenário (antiga Casa de Pedra) que tinha no alto aquela construção. Hoje ela lá está, alva com um pouco de lodo, marca do tempo que me traz as lembranças da infância. Poder se ver, observar os arredores, viajar no tempo. Impressões que afagam a alma.
Leia, curta, comente e compartilhe com quem você mais gosta!
Publicado na coluna 'Crônica em destaque' no Jornal A União de 23 de julho de 2022.
Amigo Professor Thomas, só quem viveu nesta cidade maravilhosa nos anos 80, sabe o que significa cada palavra de suas crônicas!
Obrigado pela viagem ao passado!