Dia desses ouvi uma história muito interessante que não poderia deixar de registrar. Foi por volta de 1965, Francisco dos Santos tinha completado seus quatro anos. Morava no bairro de Bodocongó, em Campina Grande, e de suas lembranças vinha o mundo do trabalho nos arredores do antigo matadouro municipal. Morava em uma casa muito humilde com seus pais e irmãos. O movimento de animais era grande, quer seja o gado, os cavalos e os burros de carga ou mesmo os urubus no céu.
Por trás do matadouro, onde repousava a sua residência, dava para ver da janela um riachinho, um esgoto que saía do curtume e um matagal que se espalhava por todos os lados. Na frente havia uma cerca e do outro lado era a descarregadora de animais que iriam para o abate. Mais embaixo havia um roçado, muito animal por ali pastando. Do cercado, os magrinhos e de pouco valor eram soltos e morriam. Nessa época tinha burro morto por todo lado. O cheiro e a peste de urubus eram marcantes para aquela criança. Fim de tarde, mal anoitecia, sua mãe botava todos os filhos para dormir: “a gente tudo moleque, mãe inventava um negócio de uma cruviana: vão dormir menino, olha a cruviana! Na mesma hora chamava a gente pra olhar pela brecha da porta e da janela, aí mostrava, apontava pra longe, onde eu via um cavalão branco, aquele bichão, ela apontava e dizia: olha ali a cruviana. Se vocês não forem dormir, eu vou chamar ele pra cá. Um monte de menino tudo com frio, sem agasalho, lençol feito com saco da têxtil, era uma dificuldade danada, aí mãe marcava aquele medo na gente. Pois é, eu cresci ouvindo isso de mãe” afirmou Santos.
Já moço, ele questionou a mãe: “que danado era a cruviana que a senhora dizia? Será que era a cobra que aparece no meio do açude de Bodocongó que eu nunca vi?”, Dona Anália respondeu: “Eita, mais vocês eram besta, era um cavalo que o cabra amarrava lá na frente, toda noite, Seu Otávio, quando chegava do trabalho”, cavalo em que as crinas e o rabo eram sempre em movimento ao sabor do vento.
O espírito humano é susceptível a impressões, muitas dessas se solidificam na mente, causando perturbações medonhas com consequências várias. Assim, acontecimentos reais vão se esmaecendo na memória, transformando-se pouco a pouco em lendas. Já dizia o estudioso do folclore piauiense João Alfredo de Freitas ainda no século XIX: “a luz brilhante de uma estrela, o mover turbulento e sombrio das ondas, o deslizar suave das águas cristalinas de uma fonte, a figura gigantesca de uma montanha, a aparição periódica de certos astros, e muitos outros fenômenos exerceram uma influência fortíssima dos primeiros povos e foram origem de várias lendas, crendices e bruxarias”, certamente a Cruviana é uma dessas, lenda indígena muito forte no interior do nordeste e norte do Brasil ainda hoje.
O folclorista mor Câmara Cascudo, afirma ser uma friagem da madrugada, chuva fria e fina. Embora ele não conheça a personalização da Cruviana, são corriqueiras as histórias que tem forma de mulher, que seduz forasteiros durante a noite, encantando com uma brisa. Na região norte, é a mãe-do-ar, a deusa dos ventos, uma entidade com forma feminina capaz de manipular o ar. Cascudo ainda descreve sua geografia e denominações: Corrubiana em Minhas Gerais, Graviana no Ceará, Cruviana no interior da Paraíba e do Rio Grande do Norte. Cruviana é também um termo fortemente utilizado no folclore roraimense, prova disso é a obra do ilustrador William Cavalcante que traz a entidade dos ventos, uma mulher cercada de várias plantas sopradas por sua ventania. Velhos pescadores do açude de Bodocongó e também da região dos Cariris Velhos afirmam ter receio da entidade mítica, ou faz um fogo para espantá-la ou é melhor voltar para casa logo. No Piauí se diz que Pôr-do-sol bem vermelho, é sinal que a noite vai ter Cruviana. Outra máxima é que “Aparece a Coruviana à procura daqueles que se deitam nus”, como afirma o escritor Daniel Gouveia.
A força dos mitos e lendas impressionam e a história de Francisco dos Santos só reforça a continuidade dessa lenda indígena. Sendo em forma feminina, de vultos, de neblina, ou mesmo o cavalo branco lá de longe, Dona Anália mantinha o cuidado e o controle dos filhos pelo “eterno reino do medo” (como diria Ademar Vidal) utilizando a Cruviana, sem mesmo saber que estava reforçando e perpetuando a cultura de seus ancestrais.
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Publicado na coluna 'Crônica em destaque' no Jornal A União de 31 de julho de 2021.