Era um fim de tarde entre julho e agosto, Martiele (chamávamos de ‘Meu’) e eu sentamos n’um batente que separava a sua calçada da minha. Já tomado banho e agasalhado, víamos o sol se despedir e a escuridão da noite ganhar o céu, ao mesmo tempo em que comentávamos sobre a peleja que nos tomou o dia, sendo tempo de coruja (como chamávamos a pipa), batalhamos muito para confeccioná-las, fazer a “rabichola” até que pudéssemos brincar. Em tenra idade, além da escola, essas eram as brincadeiras em que nos ocupávamos. É quando a mãe de Meu aparece no portão e eu descubro que ele teria que cumprir castigo a tarde toda, mas não respeitou o que a mãe ordenara e, sem nenhum remorso, fez pouco caso da reclamação. Cabisbaixo fiquei, me sentindo culpado.
Dona Lúcia dos Santos era alta, branca, cabelo preto bem baixo com um “pitozinho” de quase um palmo amarrado atrás (jamais mudou o penteado!), mancava da perna direita, de modo que andava fazendo uma leve ginga. Religiosa, sempre nos terços rezados na rua, fazia questão em carregar a cruz. Mulher experiente, sentou ao nosso lado e emendou uma história: “– Eu era menina e já vivia nessa casa. Aqui na rua só moravam nós e Dona Normanda, o resto era tudo mato. Tinha algumas casas na rua da SAB, outras p’racolá, aí um dia a gente soube que um menino desapareceu. Mãenália disse que foi o Papafigo quem levou”. Até aí, a observávamos, mas não tínhamos ideia de que era uma história escabrosa, e sim mais uma que escutávamos na rua... Ela continuou: “– O menino quando é ruim, desobedece a mãe (já olhei pra ‘Meu’ com medo que ele sumisse!), quando vai mal na escola, quando dá trabalho em casa, o Papafigo vem e leva; a gente, pai e mãe, não tem como fazer nada, porque ele anda por aí, as vezes é um velho maltrapilho, as vezes é gente mais moça, quem sabe?”.
O Papafigo é uma lenda urbana brasileira, muito forte no Nordeste, sobretudo na Paraíba e Pernambuco. O folclorista maior Câmara Cascudo afirma que ele é o lobisomem da cidade, é sempre um “negro velho, sujo, vestindo farrapos, com um saco ou sem ele, que rapta crianças para comer-lhes o fígado”. Anda sempre à noite, à tardinha ou no crepúsculo. Na década de 1940, o escritor paraibano Ademar Vidal testemunhou e registrou o “eterno reino do medo” em que as crianças eram subjugadas e não só elas, como também seus pais, que temiam o desaparecimento dos filhos, algo que não era incomum na João Pessoa da época. Sofrendo de um mal incurável, as dores cruciantes do Papafigo eram amenizadas quando o enfermo comia o fígado de criança. “E para não ser injusto, apenas restringia a caça aos meninos mal comportados, aqueles que eram desobedientes e chorões”, afirma Vidal; além disso, qualquer criança pode ser atraída com “momices” ou promessas de doces para ir a um lugar de coisas belas. De dia, fazia plantão no cemitério, esperando o enterro de “anjos” para sua saciedade.
O polímata Gilberto Freyre conta em ‘Casa Grande & Senzala’ que certo ricaço em Recife, não podendo se alimentar senão de fígados de crianças, tinha seus escravos por toda parte pegando menino num saco de estopa. Segundo Cascudo, esse mal é a lepra e que sempre foi visto como um mal do sangue, portanto, do fígado. Assim, como rezam os curandeiros, verdadeiros herdeiros dos segredos antigos, ‘similia similibus curantur’, ou seja: ‘os semelhantes curam-se pelos semelhantes’, princípio fundamental da homeopatia. A tradição horrenda é antiquíssima. Em pesquisas pelo Nordeste, Cascudo conversou com vários doentes que ao serem indagados se o fígado humano é aconselhado, responderam: “dizem...”; ele também afirma que em 1938 foram presos em Natal-RN dois homens doentes levando crianças para tal lugar. Entretanto, em seu Dicionário do Folclore Brasileiro, também aponta como “pederasta ativo” um dos significados do Papafigo.
Com a instauração do medo, Dona Lúcia não só punia o seu filho com o castigo, como também nos causava um verdadeiro terror, já que a esse momento, a calçada estava repleta de garotos se entreolhando com olhos arregalados, “– Depois da hora do anjo (18h), é pedir a bênção aos pais e ficar dentro de casa, do contrário, vocês podem desaparecer com a noite...”. Não adiantou minha mãe acalentar meu coração, foram vários os dias em que as noites daquela rua não contaram com a presença da gurizada!
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