“São Bento, pão quente
Sacramento de altar
Toda cobra do caminho
Arrede qu’eu vou passar!...”
(Ensalmo nordestino)
HÁ MUITO TEMPO que ouço histórias sobre uma cobra preta. Morador do bairro de Bodocongó, onde se aproveitou as nascentes na Serra da Catirina e criou-se um açude, o Açude de Bodocongó, que no início do século passado se pensava em abastecer a cidade de Campina Grande (inclusive ainda exista tubulações antigas oriundas dos grandes tanques da vizinha cidade de Puxinanã), nesse açude se propagou uma lenda deveras interessante, chamamos por aqui do mito da cobra preta.
Santo da Terra (filho de Dona Anália e seu Manoel), meu antigo vizinho que é um visionário, criador de uma biblioteca comunitária, defensor dos arrabaldes do açude de Bodocongó, da mata ciliar, me fala de seu conhecimento sobre o que era o açude e o que é hoje, totalmente desfigurado, assoreado, sem a pujança que sempre teve, dos inúmeros pescadores que hoje restam alguns poucos na matinha (assoreada) que o açude oferta. Ele me contou uma série de histórias. Sua saudosa mãe foi minha vizinha e falava não só sobre a cruviana como a história da cobra preta do açude de Bodocongó. Mãe Dalina, outra vizinha nascida em 1916, me dizia ter visto essa cobra em cima de uma pedra no meio do açude n’uma seca grande entre as décadas de 1960 e 1970. Santo da Terra me contou que a origem desse mito em Bodocongó teve como personagem uma tal mulher que ao ir à uma novena nas festejadas terças-feiras na igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro (que ocorrem ainda hoje a partir das cinco horas da manhã, mas não mais frequentada como antes) ela estava grávida e ocultava a barriga, evitando um escândalo familiar à época. Chegando à igreja, que ficava bem próxima do balde do açude, sentindo muitas dores, a tal mulher se dirigiu às margens daquele manancial, teve o rebento e o jogou às águas. Reza a lenda que o bebê se encantou e virou uma cobra preta de modo que quando a mãe vinha às novenas perpétuas de terça-feira, ela saía das águas à procura de sua mãe para se amamentar.
Segundo o mestre folclorista Câmara Cascudo, há uma série de histórias no mundo lendário sobre uma cobra ou serpente. De Quetzalcoatl (serpente emplumada dos Astecas) aos mitos amazônicos envolvendo cobras como os irmãos Maria Caninana e a cobra Norato, bebês jogados às águas por um pajé. Em toda a Parahyba é bem difundida a lenda de origem portuguesa que segundo Cascudo: “em que a cobra procura as mães que amamentam os filhos, surpreendendo-as durante o sono, sugando-lhes o seio e pondo a ponta da cauda na boca da criança para que não chore”. Não há uma família sequer do litoral ao sertão, dos Cariris Velhos às serras do Curimataú que não diga que tal fato ocorreu com um parente ou alguém bem próximo. Nas zonas rurais de antigas vilas e povoados, surgem outras menções às ditas cobras-preta. Uma delas ainda está nas cercanias de Pombal (informação que devo ao amigo escritor José Tavares) em um casarão, sede de fazenda, e que é garantidora da paz por não deixar qualquer serpente aparecer. Dessa informação, lembramos da característica da muçurana (ssú), cobra ofiófaga que devora outras serpentes. Seu habitat realmente é a caatinga.
Uma outra história bem difundida por essas terras é que uma cobra preta encanta viajantes, quer seja motoristas ou condutores de carroças, carros de boi, etc. se estão próximos a um curso d’água, um barreiro ou mesmo um açude, o encantamento da cobra leva esses viventes ao encontro da morte por afogamento. Na região do Seridó, entre a Parahyba e o Rio Grande do Norte, há a informação de que uma cobra preta age, principalmente em noites de lua cheia, atraindo os viajantes para o balde do açude Itans e o posterior afogamento (informação trazida pelo amigo escritor José Ozildo dos Santos).
É por demais interessante como mitos como esse da mboi-uma, mboi-açu, mboi-tata, tudo isso elencando uma cobra grande de poderes mágicos. Como diz o mestre Cascudo, o povo vai disseminando e dando a pátina da autenticidade incorporando essas lendas, histórias recheadas de sentido e de uma veracidade que é uma afronta questioná-la a um pescador do Açude de Bodocongó (Campina), do Itans (Caicó-RN), de São Gonçalo (sertão da PB), do Congo (Cariri da PB). Em Bodocongó muita gente morreu afogado e na coletividade aquilo ocorria por atração da cobra preta e ela só desencantará no dia que a mãe aparecer. Por isso minha mãe não me deixava tomar banho no açude...
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Publicado na coluna 'Crônica em destaque' do Jornal A UNIÃO em 24 de abril de 2024.
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Eu cresci escutando essa história de minha mãe Neusa "em memória", que contava que quando morava em Casinhas, distrito de Surubim-PE, um homem chegou em casa a noite, e encontrou sua mulher dormindo, com uma cobra mamando nela, enquanto a criança sugava o rabo da cobra preta, daí a cobra subiu bem rápido pelo punho da rede, e fugiu pelos caibros do telhado da casa.
Um mergulho na memória das histórias que crescemos ouvindo... Um textoafeto!