A Pracinha estava muito animada. Aquele céu caririzeiro bem estrelado. As nuvens se dão ao desfrute de aparecer como flocos somente na borda do céu, lá no horizonte, pareciam mesmo emoldurar aquele espetáculo brilhante. Era lua cheia e o vento gélido do alto do Planalto da Borborema causava um misto de sensações. Andar pelas ruas, contemplar aquele céu que parece ser muito mais estrelado do que em qualquer outro lugar, era só o que dava vontade de fazer. Espiar as constelações, as nebulosas, parecia que o cosmos se abria e aquele disco lunar magneticamente nos atraía para voar. Coisas do Mundo-Sertão.
Mas havia marcado um compromisso três dias antes em Campina Grande e teria que voltar no máximo as 19h30. Cogitei até ficar, curtir a praça da matriz, ver toda aquela movimentação, o desfile da sociedade serrabranquense e toda sua idiossincrasia, enquanto bebericava algo, esquentava o ser com um caldinho... Que vontade! Lembrei do amigo Agenor que sempre diz: “ninguém é obrigado a tratar, mas se tratou, tem que cumprir!”. Sendo assim, me despedi da praça, dos amigos Prof. Zezito e Sérvio Túlio, da minha Serra Branca e parti.
Sozinho, vim bem devagar. Procurei a melhor sequência de música para aquele momento e deixei baixinho. Dividia as atenções com a voz dos ventos que entravam pelas janelas do carro e da alma, trazendo aquele cheiro gostoso do mato ainda verde. Inevitável os solavancos causados por caminhões que tenho certeza andavam muito além da velocidade permitida. Azar o deles! A lua cheia permitia ver a silhuetas das serras, das pedras, do tempo. Juro que ficaria ali por horas admirando aquela poesia com cheiro do marmeleiro e da jurema, com as formas sinuosas e geométricas da muralha do meio do mundo e com os sons soturnos da caatinga fechada, tudo isso sob um céu azul escuro salpicado de astros regidos pela lua de São Jorge, dos amantes, das marés poéticas.
Saio da – ainda não duplicada – BR 412 e deslizo suavemente sobre o regular asfalto da PB 138. Ali era que estava mesmo uma beleza. Para se ter ideia, até chegar a Catolé de Boa Vista não fui incomodado por nenhum veículo. Mas voltemos. Uns cinco quilômetros da saída da BR, está curiosamente disposta nas fraudas da margem direita da rodovia estadual uma cruz. Hoje reforçada, com uma base em cimento, mas a antiga e carcomida está logo do lado. Me refiro a Cruz do Gavião, um monumento religioso que foi erigido após a morte do cangaceiro Gavião, homem do bando do guerreiro togado Augusto Santa Cruz que em 1912 protagonizou uma das maiores guerras do Mundo-Sertão contra o governo da Província da Paraíba. Após ser preso, Gavião foi escoltado a pé por policiais, junto a outros presos e por fim, no caminho entre São João do Cariri e Campina Grande, o libertaram para a outra vida e ocultaram seu corpo em meio a macambiras, caroás e xique-xiques; logo depois encontrado, enterrado e a comoção fez com que ali pousassem uma cruz em sua homenagem.
Na cruz fincada no caminho não tardou a surtir milagres e a ser alvo de peregrinações. Antes do asfaltamento, ocorrido há quase dois anos, a estrada era carroçável e muito pouco transitada. Até cheguei a escutar a história de uma cruz perdida entre o distrito de Catolé de Boa Vista e a cidade de Boa Vista, mas depois da pavimentação, recebi a informação do amigo Marco di Aurélio sobre a existência e a quase localização e não tardei em achar. De dia, costumo sempre parar, fotografar, ver os ex-votos, mas de noite, não. Até ganhei um folheto de cordel ‘Romance da Cruz do Gavião: o bandido que virou bendito’ (2017) do amigo Roniere Leite Soares.
Foi aí que deslizando devagar naquela noite enluarada, avisto a cruz de longe e resolvo diminuir ainda mais a velocidade para observar, estava a aproximadamente 30km/h e de repente, após o foco da luz mais intensa dos faróis ter passado pela cruz, vejo um vulto, uma mulher magra de cabelos compridos, com um vestido sem cor, mais pareciam farrapos. Ela ia se dirigindo à cruz e eu a vi de costas, pisei no freio atônito e não sabia para onde olhava, se para o retrovisor direito para confirmar ou virar o rosto para enxergar com mais nitidez. Da espiada no retrovisor e o consequente acendimento das luzes encarnadas atrás, vi que alumiou uma pessoa. No momento em que me viro, a sua carreira com os pés “batendo na bunda” ganhou a escuridão rapidamente. Controverso é que aquele trecho para além do acostamento é um leito de pedregulho imenso, impossível se mover ali com tanta velocidade.
Caindo em si, observei os metros que se seguiram, já um pouco mais ligeiro, se havia chance de ali ser uma emboscada para assalto. E não era! Então... O que será que eu vi? Mas eu vi sim! Que mistério...
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