Era oito e pouca da manhã, cheguei com o meu amigo Professor Zezito na Vila Real de São João do Cariri, a rainha dessas terras, a emblemática cidade de onde tantas outras beberam um pouco de sua tradição histórica e desenvolvimento, crescendo ao seu redor. As primeiras horas da manhã foram testemunhas das missas que vararam a noite, celebradas com tanto amor e zelo, atendendo a todas as recomendações sanitárias, inclusive, em parceria com a secretaria municipal de saúde.
São João do Cariri é uma cidade monumento, seu patrimônio histórico demonstra uma cidade que foi “especialmente congelada” em fins do século XIX e início do século XX e que hoje se monumentaliza em um patrimônio arquitetônico tão especial que não só deveria ser tombado como Patrimônio Histórico Nacional (da forma que Areia-PB é), como a cidade, conforme vemos diversos exemplos na Europa, poderia ter sua sobrevivência única e exclusivamente baseada no turismo, explorando todas suas nuances.
Assim como o São João em Campina Grande é marco na cidade e “a festa do ano” de muitos dos seus habitantes, o festejo de São João do Cariri é a semana da padroeira Nossa Senhora dos Milagres. Quando entra setembro, a cidade se veste, as casas são pintadas, as cores são mudadas ou renovadas e aquele espetáculo multicor apraz o olhar de todo visitante. Desde o início da semana, inúmeros romeiros visitam a Matriz, gente vinda de Boa Vista, Serra Branca, Taperoá, Livramento, Gurjão, Parari, Sumé, Monteiro... muitos a pé, vão celebrar o dom da vida, a saúde, deixar os ex-votos, cumprir suas promessas. Muitos vêm no fim de semana, vindos do sul do país, visitam familiares e celebram a padroeira. Testemunhei uma especial decoração da igreja, o templo radiante, em exibição o sino ancestral que rachou e se transformou em mais um patrimônio histórico e sentimental da paróquia.
Ali nos esperava com ansiedade o jovem escritor Alan Erik, que em suas obrigações eclesiásticas nos atendeu, presenteou seus livros para o acervo do Instituto Histórico e Geográfico de Serra Branca, escritos sobre tradição e religiosidade no Cariri e, naquele momento, duas figuras especiais passavam despretensiosamente defronte ao templo santo, Nivaldo Maracajá e Xicão de São João, o Xicão do Cariri. Dois grandes intelectuais e entusiastas da história, memória e cultura não só de São João do Cariri como de todo o Mundo-Sertão. Fazem parte do Instituto Histórico e Geographico do Cariri Paraibano, pessoas da máxima confiança do querido amigo e presidente do Instituto Daniel Duarte Pereira. Juntos, observamos diversos detalhes arquitetônicos e descemos a rua da matriz até a sede do IHGC, o Solar dos Árabes, que estava em finalização de pintura. O sobrado histórico do Cariri deixou de ser branco e azul para se transformar em branco com detalhes amarelo terroso, muito bonito e de bom gosto.
Há um detalhe que tenho que fazer menção, a última bandeira de porta do Solar dos Árabes não existia, o descuido dos anos excluiu esse adorno arquitetônico, a ausência protestada fez com que Xicão, dotado nas artes carpinteirais, reproduzisse em madeira e o detalhe foi afixado e pintado, revivendo a originalidade de outrora. Xicão é um amigo antigo, que virou “amigo de infância” de Zezito naquela manhã. Tivemos a oportunidade de visitar seu ateliê, do chapéu de couro de São João, se cruza a pista e se chega ao memorial. Xicão é um poeta com vários cordéis publicados, artista plástico de um estilo chamado revelação, ele colhe galhos das árvores caririzeiras tipo aroeira, pereiro, baraúna, umburana e as transforma em belíssimas obras de arte. Dá uma limpeza, uma pincelada com selador ou verniz, trabalhando a base da escultura com uma composição das nobres madeiras do Cariri, criando uma obra mágica e impressionante. Não mais emocionante que as fachadas das construções antigas de São João que ele faz, reproduziu a igreja matriz, os sobrados e várias construções a partir do pedido de seus proprietários. Trabalho singular que não só merece um reconhecimento como traduz um sentido de uma arte em um lugar que precisa muito valorizar um artista desse quilate. Em seu ateliê não só vi uma série de esculturas, como vi pinturas em telas ou mesmo em seixos rolados: pinturas, ideias, esculturas, arte. Pedi um copo com água e entrei em sua casa, soube que todos os móveis foram pensados, projetados e feitos por ele, o que me fez olhar para Prof. Zezito e dizer, Xicão não é só poeta, artista, escritor, etc a partir de agora vou chamá-lo de Mestre, seu ateliê, seu quintal no Rio Taperoá, são territórios encantados. Ele nos convidou a caminhar e caminhamos, pisando a areia do rio, me emocionei vendo a largura e a imponência do Taperoá. Suas nuances, sua força, a energia demonstrada de barreira a barreira, a alma do Cariri.
Foi memorável esse dia, especial, repleto de conhecimento. Como já disse uma vez, o Cariri é sentimento, estar em sua geografia em momento tão festivo é se deslumbrar com sua história. Ainda que assim, de máscara, rebolando álcool por todo canto, mas não perdendo o sentido, a tradição.
Comments