NOS ÚLTIMOS ANOS estive algumas vezes em Salvador, a boa terra, São Salvador da Bahia, “terra da felicidade” como bem cantou Ary Barroso. Fui cheio de curiosidade para conhecer os seus meandros, seus recantos, os mistérios e os porquês dela ser a primeira capital do Brasil. Meu olhar estava mais contemplativo e deixei cada ocasião me levar. Do sorvete na Ribeira ao acarajé da Dinha, dos mercados aos shoppings, praias, igrejas, terreiros, mirantes, fortes, a periferia pulsante. Conversei com o povo, busquei os espaços além dos holofotes. Conheci os Caretas do Acupe (de Santo Amaro da Purificação e ali na Ribeira nos recebia em evento de turismo), o grupo ‘Paroâno sai milhó’, o Olodum, músicos dos bares noturnos... Muitas foram as visitas, mas um lugar em especial me tomou e não importa quantas vezes eu esteja na cidade tenho que ir lá, entendendo o ensinamento de Heráclito de Éfeso em que nenhum homem pode banhar-se no mesmo rio por duas vezes, da segunda vez o rio não é o mesmo, nem tão pouco o homem. Esse lugar é o Largo do Pelourinho e o contíguo Terreiro de Jesus.
Da primeira vez, a cada passo que dava, fui tirando as peças na mente como a quem monta um quebra-cabeça, encaixando uma a uma as imagens que já havia visto em revistas, livros e na tv. O caminhar por aquele secular calçamento, a brisa que nos tomava nos becos assobradados e livres do sol, a visão das construções coloniais e coloridas e torres de diversas igrejas ao longe, permitidas pelas íngremes ladeiras, compunha um cenário sensorial incrível. Sons, batuques, belos sorrisos de vendedores e vendedoras, trabalhadores que de tudo ofereciam com aquele sotaque e malemolência baiana. Antes de estar no Pelourinho, o acesso mais comum é pelo – até então para mim – desconhecido Terreiro de Jesus. Ele parece uma maquete quase que retangular com igrejas, uma delas a Catedral Primacial de São Salvador, o prédio da primeira faculdade de medicina do Brasil, uma praça alegre ao centro com capoeiristas, baianas paramentadas com seus quitutes, o bar-taberna ‘O Cravinho’ e um sem número de turistas se deslocando ao altar dourado da Igreja de São Francisco e também ao Pelourinho.
No “Pelô” onde “todo menino sabe tocar tambor”, como bem diz a música de Saul Barbosa e brilhantemente cantada por Daniela Mercury, fui ao centro do largo. Lentamente dei alguns giros de 360ºC, movimento contínuo que foi me levando a uma reflexão do que realmente aquele lugar foi no passado. Talvez muitos dos que ali estavam fazendo suas fotografias, vídeos, chamadas com imagem para amigos, familiares, sei lá; muitos ali nem imaginavam que estavam no epicentro do espaço de esquecimento e de sofrimento, palco de recebimento, comércio e punição de escravizados. O significado de ‘pelourinho’ é justamente uma coluna de pedra fixada em uma área pública e central onde o estalo dos açoites e chibatadas serviam de lição para inibir futuras transgressões às regras. Lugar escolhido por Tomé de Sousa por estar na cidade alta, devidamente guarnecida de invasões estrangeiras, isso em seu passado colonial, tudo isso para garantir o lucro do negócio e bem sabemos que a cidade, que inicialmente repousava entre robustos muros, foi construída em braços e mãos escravizadas. Parecia que estava vendo chamas queimando em óleo, tochas iluminando a boquinha da noite e aquelas cerimônias dantescas de açoites e de dor.
Tem quinze dias que estive em Salvador e no momento reflexivo da semana santa, visitei o Pelourinho e dessa vez não tomei o caminho habitual subindo o elevador Lacerda. No momento, fiquei na Rua do Taboão, no sentido oposto ao Terreiro de Jesus, e ao invés de descer, subi a pequena elevação se encostando na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos dando a visão de todo o largo.
Discretamente olhei para o sinuoso calçamento, ao mesmo tempo que dava giros, observando todos aqueles contornos, sobrados coloridos, a foto de Michael Jackson no sobrado que ele subiu em clipe gravado no Brasil, lá no Pelourinho, com a banda Olodum, lembrei com tristeza que uma criança diz no início da música a seguinte frase: “Michael, eles não ligam pra gente”, e realmente não ligam! Tudo isso pelo legado da escravidão que perdurou por mais de 300 anos em nossas terras. O estudioso Laurentino Gomes aponta que é necessária uma segunda abolição.
Da escolha de Tomé de Sousa a se tornar a maior atração turística de Salvador. Esse é o Pelourinho, hoje coberto de alegria suplantando épocas de tristeza e dor.
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Publicado na coluna 'Crônica em destaque' do Jornal A UNIÃO em 13 de abril de 2024.
Turismo, história e sensibilidade. A beleza cintila enquanto os cortes sangram. Ademais, a maravilha da escrita: "repousava entre robustos muros, foi construída em braços e mãos escravizadas. Parecia que estava vendo chamas queimando em óleo, tochas iluminando a boquinha da noite e aquelas cerimônias dantescas de açoites e de dor".
Belas palavras e excelentes reflexões!
Obrigado professor Thomas, por mais essa viagem ao centro da terra, aí onde tudo começou!