As primeiras casinhas construídas na Rua d’Areia remontam o século XIX, eram um pouco mais distantes da Rua da Matriz e da área mais central do pequeno burgo. Uma das mais pomposas foi construída por um tal Coronel Terto que serviu na cidade nos tempos da Revolução. Aliás, construir não, terminar a obra. É que a construção havia sido iniciada por um Sargento da Guarda há muito tempo antes e não concluída pelo assassinato de seu dono em um dia de feira por motivo torpe, deixando a construção do sobrado apenas nas fundações e paredes laterais. O terreno da casa ficava um pouco mais alto que o nível da rua, por trás do velho Cemitério, mas o Coronel não fez caso e tratou de procurar o mestre que deu início a tudo e, tendo a confirmação de que a obra está segura e havia sido usado bom material, resolveu então concluí-la. Aos poucos foi se erguendo o belo sobrado com frisos, cornijas e diversos adereços ornando portas e janelas. No alto, em destaque, o brasão de sua família. Demorou mais de um ano para ficar pronto, enquanto isso, Terto era hóspede de uma pensão na Rua do Comércio.
Ao saber que o Coronel estava dando continuidade à construção, a dona da pensão o alertara: – Sr. Coronel, tanto lugar para construir e o senhor foi escolher logo ali? – O que tem de mal, minha senhora? – Dizem que ali é mal-assombrado. Quem passa por lá vê visagens, alma e até o diabo já viram dançando lá na frente em noite de São João. Sem falar que a alma do Sargento costuma bailar por ali, desassossegando o povo que mora perto. A essa época não havia o Cemitério das Areias, lá no fim da rua e algumas pessoas costumavam ver vultos nessa construção quando o enterro era no fim de tarde.
E a retomada da construção começou com o mestre Ciço Mancha, que tinha esse nome por estampar uma marca de nascença ao lado da boca. A obra demorou um pouco por conta do acabamento que veio parcelado do Recife, mas ficou prontinho e belo. Na mesma semana o Coronel trouxe sua esposa e filhas do sertão. Durante sua viagem, as janelas do sobrado batiam a noite toda; entretanto, de dia apareciam fechadas... e o lugar pareceu mesmo que ia continuar sendo mal-assombrado. Já instalados, a esposa adorou o novo lar. Tudo de muito bom gosto. Até um piano ele negociou com um maestro do lugar, já que as três filhas aprenderam a tocar com seu avô materno. Até que na hora do jantar, ela viu um vulto sentado à sala apagando a vela. No dia seguinte, a filha mais velha viu um vulto entrando na camarinha. O Coronel não acreditou e levou tudo na brincadeira, maluquice feminina. Dias depois sua filha mais nova apavorada, entra em seu quarto e disse que uma velha senhora não a deixava dormir puxando seus pés. Ele foi para a sala e não conseguiu dormir em uma rede, toda vez que pegava no sono, sentia a furada de agulha. Antes do amanhecer cortaram o punho da rede. Quem foi? Quem sabe?
Logo bem cedo, o Coronel foi pedir a benção ao padre na Igreja do Rosário. Não devidamente satisfeito, foi à Matriz de Nossa Senhora da Conceição pedir o mesmo e conversou com o vigário sobre o ocorrido. Solícito, o clérigo tentou acalmar seu o coração angustiado pelas assombrações e, caminhando, o acompanhou até a calçada e mostrou o sobrado em frente à igreja dizendo: – Esse sobrado não prendeu só degradados, prendeu almas também. Em seu oitão ou no alto do telhado, aqui acolá se vê almas, e não são aquelas pessoas fazendo necessidade em dia de missa, é alma mesmo. Até um pobre peregrino é visto descendo o beco-do-mijo às carreiras. Já fui lá e benzi o prédio, mas aqui é assim. Não se preocupe, em uma vila ordeira como essa, até as almas são boas. Zombeteiras podem ser, mas não há nenhum mal. Reze um pai nosso e três Ave Marias, vai acalmar seu coração.
O Coronel recebeu bem as palavras do vigário, mas ao chegar em casa, sua esposa reclamou de todas terem ouvido louças quebrando na sala e no lugar nada quebrado, só o barulho. Todos se reuniram de joelhos na sala do oratório e rezaram até que um estrondo nos fundos interrompeu a reza, Terto vai até o terreiro e vê um homem acocorado ao lado de dois batentes que já existiam da construção antiga. O tal homem transformou-se em fumaça. À tardinha, uma mão forte batia na porta, quando o Coronel foi abrir a porta, um vulto saiu de suas costas e ganhou a rua. Um homem negro e alto, parecia muito com um tio querido que mora no sertão, o Chico Vaz. Em desespero, o triste homem foi à fruteira e tomou duas lapadas, sem antes contar o ocorrido a uns três ou quatro populares. Após sair da fruteira, um dos ouvintes comentou: – Esse mal assombro é de dinheiro e deve estar enterrado ao lado desse batente...
De volta ao sobrado, o Coronel resolveu esperar ver o que aconteceria durante a noite, após ouvir tudo quanto é voz, móveis saindo do lugar, barulho de louça e de talheres, no outro dia recebe a notícia que seu tio Chico Vaz falecera no sertão justamente no fim da tarde. Ele se benzeu, deu as ordens e nunca mais pisou no sobrado mal-assombrado.
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Publicado na coluna 'Crônica em destaque' no Jornal A União de 3 de abril de 2021.
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