Para um amigo caririzeiro.
Bem escorado na quina do balcão da bodega, era quase onze. O céu não tinha uma nuvem e o calor que animara já era enfadonho. Ali, arrodeado de secos e molhados e de gente boa, escutei algumas histórias e, discretamente, tomei nota, sempre escrevendo uma coisa ou outra em um pequeno bloco de papel. É quando um cidadão tira o chapéu e diz para mim: “– Vou contar uma pra vosmecê, pra modi o dotô notar tudim que é história verdadeira”. Tá certo meu amigo! Respondi. Como é seu nome? “– Zé, sou conhecido por Zé”. O senhor aceita uma lapada de brejeira seu Zé? “– Oxente, nóis viêmo aqui pra quê? Chegue aqui nesse copo, que vou lhe contar”, e começou:
“Tá vendo esse Cariri Velho aqui? Terra que tem história, lugar simples, de povo bom e de fé. Há uns 50 anos, eu era pequeno e tinha oito irmãos, a gente aprendeu a rezar sabe como? Primeiro em casa, com Pai e Mãe. A gente aprendia de joelho. A noite Chico Velho meu Pai botava a gente na fila pra rezar perto da parede dos santos; era o Pai Nosso, Ave Maria, Santa Maria, Salve Rainha e o Crê em Deus Pai, o credo não é? Ele sentado em um tamborete, a sala só tinha uns quatro tamboretes e uma banquinha de pau, bem simples, com o rádio Semp de ‘quatro elemento’, onde pai se encostava, sentadinho escutava a rádio Nacional, tá me entendendo? E a gente na fila até terminar a reza. Aqueles que não queriam rezar iam pro cacete! Terminando de rezar, benção Pai, benção Mãe, saía no terreiro pra dar uma mijada e ia se deitar, dormir. Sete e meia já era o primeiro sono.
A gente morava há quase 5 km aqui da zona urbana e se guiava pelo badalar do sino que, mesmo com toda a distância, por conta do silêncio do meio do mato e a beira do rio, era possível ouvi-lo soar. Como não se tinha relógio em casa, só se sabia das horas ou pelo sino da Matriz ou pelo velho rádio que Pai controlava o tempo de ouvir, escutava baixinho para não gastar a energia dos elementos (pilha). Não se podia ligar o tempo inteiro, era desse jeito juro perante a Deus!
Mãe é parda e Pai um galego de olho azul. A vida da gente era assim, quando começava a clarear que os passarinhos chiavam nos ninhos, a gente acordava. Dali, levantava da rede e ia escapando das poças de xixi dos irmãos mais novos e nunca esqueço de alguns deles levando a rede para pendurar no cercado, pra secar. Daí Mãe fazia o fogo no fogão à lenha e naquele quentinho, íamos se arranchando perto dela. Se ouvia os primeiros mugidos no curral, as galinhas e o galo descendo do poleiro, pareciam disputar em grito com os cachorros. Minha mãe me dava um punhado de milho e eu jogava no terreiro, aí chegavam uns patos, havia uma perua que rodava, um monte de rolinha, bem-te-vi e sabiá vinha e aquele monte de bicho animava o início da manhã. De ouvido sempre aberto, Mãe esperava a primeira badalada do sino, que era ouvido mesmo ao som dos animais. O toquezinho bem distante era o sinal e Mãe mandava a gente tomar banho no barreiro, um pouco atrás da casa, nos fundos do sítio. Aquele começo de manhã, o sol brando e a água gelada, chega fumaçava. Com as cuias, a gente ia dar pinote dentro d’água, daqui a pouco todo mundo batendo o queixo, um frio de lascar, corria tudo pra dentro de casa, Mãe enxugava a gente e vestia, era quando Pai puxava pra missa todo mundo já na segunda badalada. As vezes Mãe ia e meu pai ficava, fazia o café e arrumava a casa, varrendo o terreiro a nos esperar.
Todos prontos, iniciávamos a caminhada. Ou ia de chinelo ou mesmo descalço com o par de sapatos dentro de um bizaco. Era engraçado porque as vezes a gente se distraía, tudo menino, e queria subir nas coisas ou chutar pedra e se machucava. Lá na frente a vizinha acompanhava com os filhos. Já perto da cidade, quando escutávamos a terceira badalada, tinha bem umas oito pessoas e uns vinte meninos. Na entrada da rua, uma torneira de aguar o canteiro da Prefeitura era onde a gente lavava os pés e calçava o sapato. Toda mãe mandava os meninos se benzerem de frente a igreja antes de entrar. A gente sentava mais atrás, porque o povo da rua já ocupava os bancos da frente. A ordem de pai imperava e uma vez em que eu peguei a fila da hóstia, ele me tirou puxando pela orelha. Morri de vergonha, mas tinha uma vontade danada de saber o que era aquilo que as pessoas botavam na boca, nem mastigavam. Na semana Santa, era quando eu tinha mais medo, a missa de Aleluia. Mãe fazia um medo da bixiga, ela dizia que tinha que encontrar uma luzinha acesa nos fundos da igreja. Se o Padre lendo a Bíblia não encontrasse essa aleluia até meia noite, o mundo se acabava. Aquilo era mermo que matar a gente. Quando dava meia noite que acendia a luz e badalava o sino, chega eu respirava fundo, o mundo não vai se acabar. E não se acabou até hoje, agora Jesus vai voltar, vocês vão ver”.
Esse relato dos modos e costumes caririzeiros me encanta, sobretudo de um velho retratando a ternura de sua infância em meio a dificuldade. Tomamos mais uns goles e nunca mais encontrei Zé. Saudades do Cariri, saudades do meu Mundo-Sertão!
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