O pescador tem dois amor, um bem na terra, um bem no mar
(Dorival Caymmi)
Acordava todo dia bem cedinho, ainda escuro. Acendia a lenha do fogão e logo ia fazer o café. Dos dois candeeiros acesos, um deles pendurava n’um punho de rede defronte ao quarto, o claro da chama azeitada e o cheiro de café fervendo, eram os chamados de bom dia a seu marido; hora de levantar. Arrastando uma chinela, ainda a calçar, vestia uma surrada camisa de botão que um dia já foi xadrez, hoje é da mesma cor dos farrapos da bermuda; o sol e o sal a queimaram. Sai do quarto, o chacoalhar da cortina feita inteirinha de conchas é o sinal; ele levantara.
Pescador antigo ali naquelas bandas de Costinha, foi um dos fundadores da colônia de pescadores. Seu pai foi pescador, seu avô também. Nascido ali na beira do Rio Paraíba, não aprendeu outra coisa e por destino, carregava no coração e na mente aquela tradição ancestral da vida devotada ao mar e também ao mangue. Sabia como ninguém andar pela restinga, mas sua paixão era o mar. A casinha em que moravam era uma riqueza: parte em tijolo, da cozinha para trás era de taipa, mas o casal vivia como numa mansão. Forçado a casar com Maria de Chico por conta de uma gravidez, Cosme viveu alguns anos em uma caiçara velha na praia, único favor que seu pai poderia prestar. A palha que a cobria exalava um cheiro forte de pescado e demorou para que a coisa melhorasse, ou o odor passou a não mais incomodar. Ali naquela choça, Rosita nasceu pelas mãos de Lourdes parteira, que recomendou que a menina não vivesse naquela exposição de ventos, pelo menos os primeiros meses.
– Dia, meu amor! “Dia”, ele respondeu, sempre acabrunhado. Nunca se acostumou com afagos e gestos de amor. – O café tá quase pronto. – Tá bom, vou terminar de ajeitar as coisas, as iscas arrumei ontem à noite. E depois do café, ele enche o bornal com umas bolachas secas, umas toras de queijo, umas “pior-sem-ela” assadas, pega sua jangada e, aos primeiros raios de sol, parte com seu cunhado para a lida no mar. Da areia ela grita: fique até aqui na ponta do cabedelo, o mar tá revolto desde de ontem... carece de ir longe não. Ele arruma o chapéu e se vira rumo ao horizonte como se nada tivesse ouvido. Sua jangada subia e descia ao sabor das ondas, e Maria o observava com angústia. Ela acorda todo dia de madrugada e vê sempre seu amor enfrentar o mar, não havia um só dia em que o coração não apertava.
Também filha de pescadores, Maria de Chico foi ensinada por sua mãe a coletar mariscos no mangue, sempre achou aquilo menos arriscado que se lançar ao mar, embora as histórias do Pai do Mangue. Até Rosita fazer treze anos, Cosme deixava ela mariscar; depois da menina crescida, foi proibida de completar o sustento da casa. – É melhor você ficar em casa cuidando de Rosita, que já tá uma mocinha, pra “modi” ela não ficar falada. E tem Júnior aí já com três anos, melhor cuidar deles.
Assim os dias passam como as ondas, uma após a outra, e ela sempre no fim de tarde ia à praia, fitar o horizonte, aquele vento forte que balança os coqueiros, faz um uivo característico e ela se arrepia toda. Aflita, só relaxa quando vê a jangadinha com seu amor e seu irmão voltando. Até que um dia passou a tarde inquieta e foi para a praia mais cedo. Sentou n’areia, cruzou as pernas abraçando os joelhos, olhava para um farolzinho depois do porto, as linhas de espuma branca iam longe, parece que o mar estava mais violento que o normal. É quando desponta a jangadinha, ela sorri aliviada. Um pouco mais próximo, enxerga só uma pessoa. – Mas é a jangada dele, o que houve meu Deus do céu, ah meu São Pedro, ah minha Nossa Senhora dos Navegantes...
Maria vê só seu irmão e corre, entra no mar toda estabanada. Meu irmão, cadê meu Cosme??? – O mar tava violento, pedi para ele voltar e ele não quis. Acolá na frente bateu com a vara num buraco, se desequilibrou e caiu, ainda alcancei a cabeça dele, desceu feito pedra. Ao mesmo tempo que mostrava o chapéu de palha. Em casa, os meninos perguntaram pelo pai, Maria deu qualquer desculpa e passou a noite rezando esperando que ele voltasse. Os pescadores se juntaram e fizeram algumas buscas, mas só encontraram um pedaço rasgado da surrada camisa de Cosme.
Vestida de branco, todo santo dia, nos fins de tarde, ela caminha até a praia, vê aquele horizonte, faz uma prece e espera que um dia a maré o traga de volta...
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