Para Dedé Santana
CORRE NAS MINHAS VEIAS um pouco do sangue cigano de meu velho pai que veio d’além mar. Nunca soube direito, ele dizia que era do coração da Europa e falava vários dialetos. Fugindo dos horrores de uma guerra, veio em um porão de navio para o Brasil, país muito bem falado por italianos que conheceu quando esteve em Roma. Aqui, conheceu uma mulata, negra linda, uma afro-brasileira, a minha mãezinha. Mulher guerreira que lavando roupa de ganho pode pôr dinheiro em casa ajudando a sua mãe a criar seus irmãos. Meu avô era bem idoso e morreu como um passarinho na própria cama em casa e minha mãe era a filha mais velha. Não fosse a união de todos, cada um fazendo sua parte, teriam morrido de fome, mas o amor os uniu e necessidade mesmo nunca se passou.
Desse enlace entre minha mãe e meu pai, nasci como primeiro fruto desse amor. Como meu pai era cigano, conheceu de tudo e aprendeu muitas coisas. Eu tinha uns dez anos quando ele resolveu criar um circo, sabia ser palhaço, fazia algumas mágicas e malabares, minha mãe era só disposição para tudo e aprendeu logo o universo lúdico do circo. Dizia meu pai que perambulou em uma charrete por boa parte da Europa acompanhando um grupo de saltimbancos onde fez de tudo, desde tocar violão e cítara a fazer mágica e equilibrismo. Em vilas e pequenos burgos, procuravam a praça central e movimentavam a vida do povoado sempre com muitas cores, fogos, músicas e alegria, um verdadeiro espetáculo. Muitas vezes não se valia a pena subir as lonas e a estada naquele lugarejo não passava de um dia, mas na maioria das vezes valia a pena ficar por dias e a comunidade abraçava-os, compondo uma grande família. Não raro, namoros ocorriam e novas pessoas se juntavam à trupe.
Com toda essa vivência, veio o “pano de roda”, um circo sem telhado, para poucas pessoas, em seguida meu pai adquiriu os troços de um velho circo por uma ninharia, também não tinha muita coisa de valor funcionando, um ônibus velho, uma caminhoneta Ford sem uma das portas e o assoalho corroído pela ferrugem, uns conjuntos para malabares feitos em madeira do início do século e uma lona com listras que se emaranhavam tamanho foram os implementos de remendos, outros tantos furos dificultavam as apresentações em dias chuvosos. Me lembro como hoje as franjas, um babado muito bem feito em um trançado que dava um ar de fineza ao conjunto. Tudo velhinho, mas com um ar clássico que honrava o peso da tradição circense e isso agradou muito meu pai. Garoto de circo até a juventude, aprendi a amar os espetáculos, o picadeiro, a cidade que o circo levantava em forma de lona. Aprendi a não temer a vida nem a morte.
Na baixada, bem na periferia, encontramos um bom terreno e para a montagem do circo, era necessário levantar uma quantia em dinheiro. Sempre pobre, minha mãe era acostumada com o fiado e teve a ideia de pedir tudo no comércio e pagar no espaço de um mês e assim foi feito. Trabalhadores à postos, tem início a música composta por diversas notas, bate pino no chão, desdobra lona, estira lona (– Cuidado para não rasgar!), puxa corda, solta corda, levanta mastro, pega madeira, bate prego, bate pino e o maestro dava as ordens e tudo ficava prontinho. Abraçados, meus pais sorriam a cada passo da montagem e a fé em que tudo estava dando certo. Foi quando meu pai saiu à tarde para comprar a tinta para reavivar o letreiro do circo e da bilheteria e numa das curvas da vida foi atropelado, caindo por cima das latas de tinta e deixando a vida após pancada brusca na cabeça. Foi aí que entendi o porquê de o circo ser redondo...
Em seguida ao atropelamento, o socorro nada pode fazer, para o desespero de todos. Justamente no dia da estreia, divulgação feita pelos palhaços e, aos prantos, fui encontrado por minha mãe em um canto da velha caminhonete. “E agora? (eu dizia) Acabou o espetáculo”. Com a voz trêmula e uma força que não sei de onde vinha, minha mãe em um ato de firmeza disse que terá estreia sim, caso contrário não haveria dinheiro nem para enterrar meu pai.
Era noite, em meio a cânticos cristãos, velávamos meu pai na continuidade do circo. Eu me benzi e pensei no quanto ele estava feliz antes de encontrar a morte, respirei fundo, passei pela cortina e entrei sorrindo. A casa estava cheia de crianças e suas famílias que, totalmente alheias ao que estava ocorrendo, sorriam com o espetáculo. Todos nós entrávamos, circulávamos todo o circo e saíamos, dando lugar para o próximo. Ao passar da cortina, o sorriso dava lugar ao choro, ao lamento e hoje eu penso que a vida é feita de círculos, de ciclos. Hoje estou na televisão, no teatro, mas é no circo que minha vida se realiza, lembrando sempre do amor de meu pai a tudo aquilo. Entrar no circo é renovar-se. É chorar, é sorrir, é viver.
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Publicado na coluna 'Crônica em destaque' do Jornal A UNIÃO em 22 de junho de 2024.
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"Trabalhadores à postos, tem início a música composta por diversas notas, bate pino no chão, desdobra lona, estira lona" (trecho digno de nota pela criatividade).
Contudo, pelo impacto do acontecimento e do desenrolar dos fatos, o texto todo é daqueles que o leitor jamais esquecerá.
História triste, mas, Como dizem os artistas,
-- O Espetáculo não pode parar.