Na antiga Vila de Batalhão, um cavaleiro andante iniciou uma viagem sem volta. Ancorado em seus oitenta e oito anos intensamente vividos, foi um baluarte da cultura, um semeador das coisas e das criaturas, uma genial mente pulsante que transcendia o mundo natural e o tempo. Um construtor de sonhos, um visionário dos saberes, dos fazeres. Um topógrafo das artes que sabia reconhecer e valorizar a riqueza das coisas mais simples na cartografia de nossos traços culturais, transformando-os em pedra de toque na criação de casas de memória, verdadeiros palcos sublimes eternizando nossas raízes.
Estou falando do querido amigo Balduíno Lélis de Farias, que se encantou na última segunda-feira (21/12) em Taperoá. A onça caetana de Ariano Suassuna o libertou do sofrimento que vinha passando e, aos cuidados de seus familiares, partiu de casa, do seu reinado encantado e enigmático.
Em vida foi um visionário em tudo que fez, ganhou o codinome de ‘Senhor dos Museus’ por Machado Bitencourt por ter criado uma série de casas de memória do litoral ao sertão, com grande destaque para o Museu Zoobotânico Arruda Câmara, na capital João Pessoa e sua homérica busca de uma onça lá no Maranhão, que veio consigo no carro. Sua genialidade esteve impressa em inúmeros projetos de pesquisa que desenvolveu e na arqueologia encontrou no velho León Clerot uma companhia e um mestre, desenvolveu pesquisas relevantes e bancou inclusive a vinda de uma equipe do Museu Nacional para uma escavação na Paraíba em uma época totalmente distinta em que os estudos em arqueologia eram muito incipientes. Essa é uma prova cabal de seu desprendimento e crença na ciência como mola propulsora de desenvolvimento.
Agora, para mim, a página mais bela de sua vida é a criação da Universidade Leiga do Trabalho, a ULT, em 1987. Um verdadeiro centro de educação e cultura onde são extremamente valorizados os ofícios tradicionais em um processo de construção coletiva do saber possibilitando que os habitantes de todo o Mundo-Sertão pudessem viver com dignidade em sua terra sem ser preciso seguir a famosa diáspora para o sul do país. Ali estive muitas vezes e vi seus olhos brilharem sempre que mostrava a estrutura, as novidades, seus sonhos e seu gosto pelos Cariris Velhos, entremeado de conhecimento, história, misticismo e cumplicidade com a rusticidade da caatinga brava, com os caminhos antigos de vaqueiros e com a aura dantesca dos sertões.
Conheci Balduíno em 2005. Um de meus primeiros passos na faculdade foi me dedicar a paixão pela arqueologia e isso fez me aproximar desse intelectual tão reconhecido e tão incompreendido de nossa Paraíba. Foi um dia todo juntos e na oportunidade ele me presenteou com um seixo rolado com a letra T gravada à cinzel: "T de Taperoá, T de Thomas. Tome, essa pedra é sua!". Esse foi o presente que Balduíno me deu na primeira das muitas visitas que fiz. Homem sábio, amigo, extremamente simples e terno, uma baraúna de nosso Cariri. Ele partiu e será mais uma estrela a brilhar no Mundo-Sertão, fazendo companhia a Manelito, Pedro Nunes, Ariano Suassuna e muitos caririzeiros amigos da maior estirpe.
No último sábado, ao ver no feicibuque um retrato de Beatriz, sua filha, conversei longamente com o amigo Marco di Aurélio sobre a situação de nosso amigo. Há tempos que tentamos (ele junto a UFPB, eu junto a UEPB) conseguir um título de Dr. Honoris Causa para ele, uma homenagem importante, um reconhecimento que a Paraíba deve a ele por tudo que fez e, infelizmente, a burocracia não nos favoreceu. Foi quando botei na mente que minha próxima crônica semanal no jornal A União seria "Balduíno Honoris Causa", uma homenagem ao velho e querido amigo. Nem imaginava que ao chegar na segunda ele se encantaria, e bem ao seu modo: uma data palíndroma 21/12, e idade também palíndroma aos 88 anos e ainda mais no solstício de verão, no exato dia do alinhamento de Júpiter com Saturno, ocorrido antes no longínquo ano de 1623. Lembrei dos múltiplos de 3 que ele sempre me afirmou onde estão escondidos os segredos da Pedra do Ingá e estou certo que vai demorar muito para termos uma pessoa tão ativa, visionária, genial e a frente do seu tempo como Balduíno Lélis. O ano que parte, 2020, é bastante emblemático, não tivemos a chance de velá-lo como merecia; ano que nos levou tanta gente, da Carnaúba partiu Manelino, em novembro foi a vez de Luiz Galdino, outro intelectual amante da arqueologia e da Pedra do Ingá. Ano difícil de engolir.
Tudo fica menor, os Cariris Velhos perdem um defensor, a Paraíba perde um mentor cultural e espiritual, perdemos todos, ficamos órfãos de um pensamento genuíno e atitudes contra os inimigos da natureza e da cultura, um Dom Quixote dos sertões, um baluarte de nossa terra. Seu legado e exemplo são estandartes, saibamos valorizar.
Os Cariri, nação indígena que tanto estudou, acreditava sempre que na partida de alguém tão especial nasceria uma estrela. Balduíno é essa estrela, de Belém, que em meio ao alinhamento de planetas e a um mundo que não lhe deu o devido valor, brilhará para sempre no céu do Mundo-Sertão.
Veja a seguir um trecho de uma entrevista do grande Balduíno em sua Taperoá
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