Ainda antes desse doloroso e necessário isolamento dito social, como de costume, vinha para minha casa na hora do almoço. Passei pela UFCG, o contorno do posto do gás e o pontilhão sobre a linha férrea, rumando pela Aprígio Veloso; de um lado vejo o que sobrou dos eucaliptos da Fábrica Têxtil e vizinho, o moderno Centro de Tecnologia Telmo Araújo. Na sua frente a loja de tratores de Eugeninho (sobrinho do saudoso Pedro Nunes), o colégio Carmela Veloso e a Igreja de N. Sra. do Perpétuo Socorro. Mais adiante o Açude, compondo esse cenário do velho e tradicional bairro de Bodocongó.
Tomo à esquerda pelo oitão da igreja e lá em um quebra-molas, depois da Escola Padre Antonino, vejo um velho habitante do bairro, o Severino, que ao cambalear no calçamento, era caçoado por um magote de alunos. Baixinho, negro e bem magro; os guris do meu tempo o chamavam de “formiga” pela força que exibia. Fui devagar, saudei Severino e segui para casa pensando. Ele era figura clássica na minha infância, sempre com um carro de mão pronto a carregar feira ou o que precisasse. Vários anos depois e ele parece não ter mudado nada, com exceção de mexas brancas na cabeça, a tinta branca dos anos como diz o poeta Dedé Monteiro. Lembro de vê-lo perambulando depois de uns porres, olhos bem “aboticados”, balançava os braços, cada um dobrado para um lado, no meio da rua, uma maneira de ser notado. Calça jeans coronha, camisa aberta, não falava com ninguém a não ser uma ligação que ele simulava, com a mão no ouvido olhando para o nada, falando com o Dr. Durval de Barros, da Polícia Civil, “era pra mandar uma viatura pra Bodocongó que tem uns cabras mexendo comigo”.
Tipos populares lembro de outros, anônimos ilustres que são invizibilizados pela sociedade. Dão era um homem que morava embaixo da ponte no balde do Açude de Bodocongó bem antes da construção do canal, quando ainda corria o riacho recebendo os generosos despejos daqueles moradores dos arredores. Era curioso ver aquele homem arrodeado de papelões com um pequeno fogo. Acalentava sua solidão conversando com um amigo imaginário. Outro que vivia em meio a papelões era Carioca, bem na beira de um córrego na extensão do campo da feirinha do bairro. Andava por aí juntando recicláveis e sempre estava acompanhado de duas latas, uma dentro da outra, fazendo uma batucada e cantava músicas de Bezerra da Silva. Pândego, era muito difícil encontra-lo sóbrio; cheio de anedotas, curtia com a criançada e dizia que com o samba era rei. Barba espessa e muitas vezes bem sujo, valia-se da caridade das ruas pois se sabia que tinha dois filhos morando no barraco com sua esposa.
Outro muito conhecido em Bodocongó era Louro. Barbudo, andava com uma calça social azul, camisa de botão, sandália japonesa e boné “de banda”. Era um, como diz Jessier Quirino, herdeiro do nada, qualquer lado é o seu caminho; perambulava subindo e descendo rua, falava sozinho e não dava liberdade à criançada. E se alguém o chamasse de “Apolôim”, ele respondia com um palavrão. Caso insistisse, ele “arrochava” na pedra. Fazedor de favores, numa certa vez, minha mãe pediu para ele comprar uns pães; ao chegar com o saco, ele pediu um. Gentilmente, Mamãe ofereceu café e ele aceitou. Com um copo e pão em mãos, dizia ligeiro: “Brigado rapariga, brigado rapariga”. – Mas Louro, que é isso rapaz, que coisa feia. E ele respondeu: “Desculpe rapariga, desculpe...” Com relação a dinheiro, preferia dez reais em moedas de centavos do que uma nota de cinquenta, acreditava que era muito mais. Anos depois, conheci Agenor, um grande amigo que mora em Juazeirinho e, em certa visita a minha casa, quem vem subindo a rua? Louro! E ele o reconhece: – Thomas, faz muitos anos que esse cidadão saiu de Juazeirinho... Andava na feira, era cabeceiro. Dizia: “me dê um dinheiro fela da puta, me dê um dinheiro rapariga”, o povo achava graça (e nós caímos na risada). Era irmão de Biu Crente, filho de um camarada conhecido como Piloto nas terras da paróquia de São José.
Aqui ainda tinha Dudé, lourinho com uma franja. Mago, alto, a gurizada chamava ele de pastor, camisa de manga comprida e gestos estudados. Foi flagrado algumas vezes baixando as calças no meio da rua para moças, levando carreiras e vassouradas. Havia ainda Washington; Manezim, irmão de “Tranquêdo” (isso mesmo!), Zuza, Francinaldo e outros.
As tramas da cidade são costuradas por sujeitos como esses, que vivem a hostilizar o destino, abraçando cada dia de uma vez, ocupando-se em suas sobrevivências. Admiro muito o sujeito comum, que faz e dá sentido a tudo. Estes, populares marginalizados, rompem tabus, preconceitos, andam na sua própria mão, as vezes imaginária, praticando de maneira inconsciente(?) o anarquismo. São excluídos da história, mas como bem cantou Pescuma: “uma cidade sem eles/ vive cheia de ninguém...” e Arnaldo Batista e Rita Lee arremataram: “Mas louco é quem me diz, e não é feliz”. Vivam os “loucos”!
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