Era manhã de inverno. Todos os dias amanheciam chovendo e com um nevoeiro tão denso que acanhava os viventes. Seu Dé, vizinho contador de histórias, dizia que “era culpa do açude, trazendo essa cerração toda pro bairro” talvez fosse verdade. Caso seja preciso ir na padaria ou na bodega, se ia com muita preguiça e dificuldade, além do medo de escorregar naquelas ruas de terra até chegar a via principal. Ali a preocupação já era outra, conseguir atravessar a avenida se livrando das imprevisíveis poças d’água e também dos veículos que não davam a vez a ninguém, pareciam mesmo se divertir com o banho que davam em qualquer um caminhante. Depois das nove sempre dava uma clareada; os muros, calçadas e janelas recebiam o calor do sol e iam se desfazendo da imagem suada que os tomavam.
Mamãe chega da padaria, eu já estava acordado e a observei partir. O terraço de casa era grande o suficiente para quatro cadeiras e um pequeno centro de ferro fundido. Escorado ao portão, acompanhei ela com o olhar até tomar a outra rua depois da esquina. Enquanto a esperava, fiquei olhando para a vizinhança, fitando o vazio, contando pilastras, postes e cachorros que por ali passavam. O restinho de chuva sendo carreada no meio fio levando coisas, para onde vai tanta água? Gatos não vi, sempre me pareceu que eles não gostam d’água... Quando mamãe entra, vi dobrar a esquina duas mulheres, pessoas muito diferentes do que eu já havia visto. A pele, o tecido, o balançar das roupas, pulseiras, anéis, as unhas grandes, uma aura mística repousara ali. Longos vestidos, um amarelo e outro puxado para o verde, vinham da direção da rua da SAB, mesmo por onde minha mãe caminhou. Ainda na esquina a de amarelo olhou para mim e de imediato tentou se livrar dos resquícios da chuva, espremia cada braço enxugando-os, limpava delicadamente com toques o rosto, tentando preservar a maquiagem e adereços, amarrou o cabelo à moda rabo de cavalo, nisso a umidade ajudou, ficou bem preso e contornando a cabeça perfeitamente.
Envolvi-me com aquela cena, não sabia quem era nem para onde ia. Me compenetrei nos detalhes do vestido, ela andava parecia flutuar em um balé mágico, e quando me dei conta, estava na minha frente, no portão e tocou na minha mão ao portão: – Oi mocinho, tudo bom? Chame sua mãe que preciso falar com ela... Fiquei assustado e aflito, claro, não a conhecia. Vi a outra mulher que a acompanhara seguindo pela outra calçada, indo para outro lugar, a olhei em suplício como quem queria dizer: – Ó, você esqueceu sua amiga aqui... Fiquei atônito; minha mãe apareceu: – Bom dia, diga Dona Cigana... Foram três ou quatro palavras e ela já estava acomodada no terraço de nossa casa. O mistério e a vontade de saber o futuro seduziu de pronto a jovialidade de minha mãe, com seus quase vinte anos, ansiosa sempre por notícias e dias melhores.
Eu, do lado da cigana, estava encantado. Sua pele atrigueirada, seus olhos negros e com uma sombra que a chuva preservara no canto dos olhos, dando ares sombrios; uma pedra reluzia entre as sobrancelhas; as pulseiras falavam através de seus gestos sinuosos, o vestido de muitas camadas estava um tanto molhado, exalando um cheiro que lembrava aquelas últimas gavetas do armário, mas também tinha cheiro de rosas; era bela, suas insígnias ocultas, seu olhar no infinito eram marcantes; tomou a mão de minha mãe e tachou logo a existência de uma filha que viria logo. A quiromancia sempre foi atraente, as linhas das mãos sempre têm algo a dizer. No alto dos meus quatro ou cinco anos, eu olhava toda aquela magia e me intrigava. Cheia de sortilégios, pegou um caminhãozinho que estava em baixo do centro. Tomou minha mão, me olhou no fundo dos olhos, vi o palpitar de sua pupila ao mesmo tempo em que dizia: – Você é muito inteligente e para ser feliz tem que saber bem escolher seus caminhos. Você tem no seu destino a aventura, ganharás o mundo e viajarás muito! Ao mesmo tempo, bailava o brinquedo no ar.
Pediu um copo com água e minha mãe foi buscar. Sem piscar os olhos eu a olhava, parecia estar hipnotizado, foi quando ela delicadamente pegou em meu queixo com a mão suave, unhas, anéis, tudo brilhava e perdi meu olhar em seus olhos, parecia estar decifrando meus pensamentos, foi quando sussurrou devagar: – Eu voltarei...
Não lembro se ela bebeu a água, nem como ela saiu. Olho pela porta da sala vejo minha mãe lavando louça, ouvindo música; corro até o portão e vi uma ponta do vestido amarelo dobrando a mesma esquina por onde veio, “Na distância vi seu vulto desaparecer, nunca mais seu rosto eu pude ver”. Toda vez que escuto essa música de Roberto Carlos, ‘A Cigana’, acompanhada de um melodioso violino, lembro daquele espírito beduíno dos sertões e do mistério em que me perdi.
Comments